quarta-feira, 29 de julho de 2009

ENTREVISTAS 2 - Dossiê 25 de Abril - OTELO SARAIVA DE CARVALHO, VITOR ALVES e VASCO LOURENÇO


Otelo Saraiva de Carvalho,

Vítor Alves e Vasco Lourenço

--- OS TRES DO 25 DE ABRIL ---

Entrevista de Ana Sá Lopes e António Melo

Esta entrevista foi realizada em Abril de 2004, tendo sido conduzida pelos jornalistas Ana Sá Lopes e António Melo. Devido à sua extensão nunca foi publicada na íntegra, tal como aqui e agora se faz. Nela os três operacionais do 25 de Abril contam as vicissitudes de um percurso que se iniciou em Setembro de 1973, quando Vasco Lourenço clamou «Isto só lá vai com um golpe militar!», e teve o seu desfecho ao meio-dia de 23 de Abril de 1974. Nesse dia, de um cansado duplicador, Otelo retirou as derradeiras instruções, que enviou às unidades do Movimento: ao som do «Grândola, Vila Morena», às 03h00, na Rádio Renascença, saem para cumprir as missões que lhes foram destinadas.

A partir daí os dados estavam lançados. É esse período que aqui recordam os três principais protagonistas desse processo que pôs fim ao regime do Estado Novo, uma ditadura constitucional que durava desde 1933.

Ao longo da entrevista abordam-se os seguintes temas:

- A prisão de Vasco Lourenço e o fracasso do 16 de Março

- As lições do 16 de Março e o Programa do MFA

- O programa, Spínola e a operação militar

- Neutralização da PIDE e o Regimento de Comandos

- Ligações partidárias e internacionais






DOSSIÊ 25 DE ABRIL

Otelo, Vítor Alves e Vasco Lourenço – Os três do 25 de Abril *

A prisão de Vasco Lourenço e o fracasso do 16 de Março

P. — A 9 de Março de 1974, com a prisão de Vasco Lourenço, o governo de Caetano fica com a convicção de ter decapitado o movimento dos capitães. Afinal, o processo continuou?

Vasco Lourenço — Não sou eu quem pode responder a isso. Mas convém recordar que tínhamos a estrutura da ligação operacional. Saímos da reunião de 5 de Março [Cascais] com a tarefa de preparar o programa político, fazer o golpe de Estado e estabelecer a ligação com o Costa Gomes e o Spínola, os dois generais escolhidos pelo Movimento.

P. — Não houve a intenção dos seus camaradas de o manterem cá, «sequestrado», para a transmissão de poderes?

V. Lourenço — Houve um rapto, que nada teve a ver com uma transmissão de poderes. Eu estava detido na Trafaria, mas as coisas cá fora continuavam e eles melhor do que eu podem contar isso.

Vítor Alves — A direcção era composta por três elementos, com a detenção do Vasco, ficámos dois. Em caso de percalço, a substituição do Vasco estava assegurada pelo Sousa e Castro.

V. Lourenço — O Sousa e Castro era um dos elementos principais que eu tinha na Coordenadora para ligação às unidades. A ideia que eu tenho é que se decidiu acelerar a preparação do golpe. Isto para dar resposta a uma coisa que para nós era fundamental: solidariedade em relação a qualquer um que sofresse retaliações por parte do poder.

P. — Com a prisão de Vasco Lourenço, Otelo Saraiva de Carvalho passa a estar conectado às unidades, enquanto Vítor Alves mantém as ligações com os ramos das Forças Armadas e coordena o programa político?

Otelo — Em Óbidos [1 de Dezembro de 1973], abandonada a fase de movimento dos capitães, passa-se à segunda fase, que é a do movimento de oficiais das Forças Armadas. Há a perspectiva de alargamento a outras patentes, a majores, a coronéis, oficiais superiores, até generais. Elegemos a Comissão Coordenadora executiva na clandestinidade, que tinha 19 membros, três por arma ou serviço militar, de preferência na seguinte ordem: um oficial superior, um capitão e um subalterno. Por exemplo, são representantes de Infantaria o major Hugo dos Santos, o capitão Vasco Lourenço e o tenente Marques Júnior. Hugo dos Santos, mobilizado para o Ultramar, deixa essas funções e é substituído pelo Vítor Alves. No dia 1 de Dezembro distribuem-se funções e no dia 5 de Dezembro, na Costa da Caparica, elegem-se as subcomissões executivas para os três ramos. Eu fiquei no secretariado, com o major José Maria Azevedo e o capitão Torres, ambos da Administração Militar.

P. — É da CC que sai a direcção?

Otelo — Exactamente. Está aqui [nas actas]: «A direcção desta CC, para o expediente quotidiano, ficou a cargo de Vítor Alves, Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Lourenço». Dois majores e um capitão.

P. — Essa direcção vai até à reunião de Cascais [5 de Março de 1974]?

Otelo — Vai até Cascais. Com a saída do Vasco, eu e o Vítor Alves ficamos com a incumbência de continuar o Movimento. Mas dá-se o 16 de Março…

P. — Que papel é que o Movimento tem nele? Houve um balancear de posições?

Vítor Alves — O 16 de Março não tem nada a ver com o Movimento, embora nele tenham participado pessoas que estavam com o Movimento.

Otelo — Fugiu um bocado ao controle da CC do Movimento. O 16 de Março, numa primeira fase, surge no decurso de uma tentativa de evitar a exoneração do Spínola e do Costa Gomes, mas sobretudo do Spínola. Ele era uma pedra fundamental para muita gente: os «spinolistas» e muitos oficiais oriundos de miliciano, cuja entrada no quadro permanente originara, em 1973, o aparecimento dos decretos 353/73 e 409/73. Tinham a promessa, dada pelo Spínola, vice-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (EMGFA), de que lhes ia resolver o problema.

Por isso, tivemos uma reunião em casa do Vítor Alves, também com o Hugo dos Santos, para a qual vou buscar uma delegação desses milicianos a Santo Amaro de Oeiras. O Vasco Lourenço estava doente, [por isso] não foi. Reunimo-nos numa tentativa de evitar uma hostilidade dentro do Movimento, entre os «espúrios», que era como eles se intitulavam, e nós, os «puros». Mas o ajudante de campo do Spínola, o capitão António Ramos, era um oficial oriundo de miliciano, e tinha conseguido que o Spínola os recebesse e lhes dissesse a tudo que sim. Em resumo, eles preferiam o general. Quando em 22 de Fevereiro [de 1974] publicou Portugal e o Futuro, o que teve como consequência a exoneração dele e do Costa Gomes, que tinha dado luz verde à publicação do livro, levantou-se uma emoção neste grupo, animada pelo capitão Virgílio Varela, que estava nas Caldas da Rainha. Foi ele quem preparou a unidade para sair em qualquer momento.

P. — Mas sem operacionalidade militar?

Vítor Alves — Nenhuma, não havia um plano militar nem programa político. Embarcar numa aventura, sem programa político, era correr o mesmo risco do 28 de Maio [de 1926]: os militares não queriam aquilo, mas não sabiam o que queriam. Daí ser fundamental o programa e eu sabia que ele ainda não estava decidido entre nós. Daí não aceitar embarcar naquilo.

P. — Mas em Cascais [5 de Março de 1974] não discutiram «O Movimento, as Forças Armadas e a Nação»?

Vítor Alves — Mas era um documento muito vago e, seriamente, não tinha nada de programa. Era um manifesto que pouco tem em comum com o Programa do MFA. Foi um documento feito para congregar os camaradas na ideia de irmos para o golpe militar.

V. Lourenço — Eram uma espécie de linhas programáticas, que vão enformar o Programa.

Vítor Alves — Sim, mas na generalidade.

V. Lourenço — Em relação ao 16 de Março é preciso estar no contexto para compreender porque saiu só uma unidade, ainda que Viseu e Lamego estivessem na disposição de alinhar no golpe. Havia quem defendesse que era fácil derrubar o governo. Saía uma unidade, a população aderia e as outras iam atrás. Foi o que aconteceu na Mealhada [11 de Outubro de 1947]. Era a posição do tenente-coronel Luís Banazol, que apareceu a dizer na reunião de São Pedro do Estoril [24 de Novembro de 1973]: «Eu tenho o batalhão em Évora mobilizado, arrancamos, vamos distribuindo panfletos à população e isto cai de podre, porque os outros avançam a seguir». Um dos grandes méritos do 25 de Abril foi ter sido bem planeado e mais bem executado. A nossa experiência de guerra ajudou-nos. Foi fundamental que às três da manhã as unidades começassem a sair, de acordo com a ordem de operações, sem olhar para o lado à espera de quem saísse primeiro. Houve um capitão que esteve deslocado em plena serra algarvia, a controlar umas antenas que havia lá, sem fazer a menor ideia se os outros também tinham saído. A hora H era às três e às 3h05 a EPAM estava a ocupar a RTP, às 3h15 o BC-5 estava a sair dos portões na Marquês da Fronteira. Antes disso, o posto de comando ocupara a Pontinha. Houve planeamento. É a grande diferença em relação às Caldas da Rainha.

Convém dizer que a intervenção do Luís Banazol foi extremamente importante, devido à dinamização que provocou na rapaziada, no salto qualitativo que deu, rachando mesmo a mente de alguns, que ainda andavam a pensar em «papéis» e que ele destroçou quando lhes disse que a solução passava pelo golpe militar. Um tenente-coronel a falar para capitães tem peso na hierarquia militar.

P. — Vítor Alves afastou-se do 16 de Março, mas Otelo acaba por participar?

V. Alves — O Otelo estava no Movimento, claro, mas também estava com aquele grupinho e sentiu-se obrigado a alinhar com eles.

As lições do 16 de Março e o Programa do MFA

P. — As primeiras notícias do «16 de Março» falavam de 200 oficiais presos, afinal foram 33. Conseguiram controlar os danos?

Otelo — Houve 200 militares presos, mas no conjunto de todas as patentes. O importante é perceber porque é que as outras unidades não saíram. Por aquilo que eu dizia há bocado, a propósito do Virgílio Varela e de outros milicianos que estavam na unidade em grande peso, só o RI-5, das Caldas da Rainha, estava realmente preparado para sair. Soma-se a isto a vontade de impedir a demissão do Spínola. Eles estão preparados para sair e vão sair, para obrigar o regime a demitir-se e a recolocar Spínola no seu lugar. Acresce a presença de dois oficiais spinolistas, vindos da Guiné, um de Infantaria, o major Casanova Ferreira e o major Monge. Um veio da Guiné a 4 e o outro a 9 [de Março]. O Casanova, extrovertido, entusiasta, tinha a admiração de muitos jovens oficiais, dos quais tinha sido instrutor na Academia Militar. Eu tinha por ele uma admiração grande, tínhamos estado juntos na Guiné, e quando ele chega pergunta-me: «Então o que é há por cá? Agora com a publicação do livro do general não se faz nada?» Eu respondi-lhe: «Estamos aí a movimentar-nos, vamos ver no que isto vai dar». Diz ele: «Temos que nos antecipar». Era a tal perspectiva: sai uma coluna e as outras vão por arrastamento. Andei com ele nesses dias, para o meter dentro do Movimento.

Dois dias antes da «brigada do reumático» [manifestação de apoio dos generais à política de Marcello Caetano, a 14 de Março de 1974, em desagravo pelas críticas feitas no livro de Spínola], eu tinha conseguido, a pedido do Casanova, reunir elementos subalternos e capitães das unidades mais fortes do MFA, na casa dele, no Algueirão. Ele queria motivá-los a participarem num acção antes que a «brigada do reumático» provocasse a demissão do Spínola. O Casanova expôs sumariamente a necessidade de entrar em acção e todos queriam participar: «Sim senhor, OK da parte da Escola Prática tal», «Eu arranjo isto e aquilo…». Era uma quarta-feira, e dado o ânimo e a vontade de participação dos jovens tenentes das escolas práticas, o Casanova concluiu: «Bom, então hoje à tarde na minha casa em Lisboa».

Aí, fizemos outra reunião, onde já estavam alguns dos elementos da CC executiva. Estava eu, o Garcia dos Santos, que não era da executiva, mas também foi convocado, por causa das transmissões, o José Maria Azevedo que era do meu secretariado na comissão executiva, o capitão Costa Macedo, jugo que o alferes Geraldes, e os tenentes das escolas práticas. Elaborarmos aquilo que podia ser um embrião de uma ordem de operações. Era uma papel pequeno, aí de formato A5. Distribuíram-se ali deslocações das unidades. Combinou-se outra reunião para o dia seguinte, 13 de Março, isto porque não tinha estado ninguém da Escola Prática de Cavalaria (EPC) de Santarém e não sabíamos como é que eles e os pára-quedistas iam reagir. Disse ao Casanova Ferreira: «É pá, não esteve cá ninguém da EPC. Esteve a Artilharia, esteve a Infantaria, esteve o Regimento de Artilharia 1 de Lisboa – que depois veio a ser o RALIS. Precisamos aqui de mais elementos. Isto está muito no ar». Ele respondeu-me: «OK. Tu conheces os camaradas, vais à EPC, procuras motivá-los para virem a Lisboa e participarem na acção».

No dia 13 de manhã eu fui com o alferes Geraldes para Santarém, convoquei capitães da EPC, reunimos em casa de um deles, o Bernardo – o Salgueiro Maia não esteve presente porque estava em trabalho de campo – e expus aquela pequenina ordem de operações que tínhamos preparado no dia 12 à tarde, em casa do Casanova. Quando eu faço a leitura daquilo, um dos capitães perguntou-me logo: «Ó meu major, essa ordem de operações veio assinada pelo nosso general Spínola?». Respondi-lhe: «Não, é evidente que não, o nosso general Spínola não tem nada a ver com isto. Isto é uma coisa nossa, precisamente para impedir que haja a exoneração do general». «Ah, então nós não alinhamos nisso». Eu e o Geraldes fomos almoçar, mas chamámos a atenção para os pára-quedistas: «Não está aqui ninguém deles. Vocês têm contacto com eles?». Eles disseram: «Bom, nós podemos motivar os pára-quedistas para virem de Tancos, mas só depois do almoço».

Fui almoçar a Almeirim, ao «Mocinho», com o Geraldes. Regressámos e fui ter uma reunião com os pára-quedistas que tinham vindo de Tancos, nas instalações do antigo Regimento de Artilharia 6. Estava uma porção deles, mas veio alguém dizer: «É pá, o melhor é vocês abandonarem aqui as instalações, porque já fomos topados». Reuni-me então no meu carro com três ou quatro pára-quedistas. Disse-lhes o que se estava a preparar, para impedir a «brigada do reumático» de exonerar o general. Eles torceram-se todos, mas concordaram em mandar nessa tarde, às 18h, alguém para uma reunião em Lisboa. E às 18h reunimos em Lisboa no Dafundo, num andar que aí arranjei. Fizemos essa reunião, com o Casanova, o Monge, o Garcia dos Santos, os tenentes e capitães das escolas práticas e um capitão pára-quedista, Avelar de Sousa, que ia em representação dos pára-quedistas e da EPC. Fizemos outra vez a leitura daquele pequenino papel. O Avelar de Sousa pediu a palavra, levantou-se e disse: «Desculpe, ó meu major, mas eu quero desde já aqui afirmar que nós, os pára-quedistas, e os da EPC, não entramos nessa aventura. Isso não é nada, é uma coisa que não chega a ser um plano de operações, é um papelinho com coisas perfeitamente descabidas e nós não podemos alinhar nisso». Eu perguntei-lhe: «Mas ouve lá, a força dos pára-quedistas o que é que representa, diz lá?». Ele respondeu que os pára-quedistas eram uma força extremamente organizada, disciplinada, combativa, com grande capacidade, que queria entrar, sim senhor, mas numa coisa a sério, não nesta aventura. Eu disse: «Ó pá, dou-te inteira razão. Eu sou exactamente dessa opinião». Virei-me para o Casanova e disse-lhe: «Ouviste?». E logo a seguir: «Portanto, eu, enquanto elemento da direcção do MFA, cancelo neste momento tudo aquilo que estava em possível preparação». O Avelar de Sousa voltou a intervir: «Mas para que é que estamos aqui nesta aflição? Por causa do general Spínola? Se o general for exonerado o Movimento morre, ou continuamos?». Lá lhe respondi: «Claro que não, mas nós estávamos aqui para tentar impedir a exoneração dele». «Está bem, ele é exonerado, paciência. É um acidente de percurso no Movimento. Não interessa». Concordei e cancelei a operação, contrariando fortemente o Casanova Ferreira, que me veio dizer:« É pá, fizeste mal». «Não, não», respondi-lhe eu, «É assim. Em nome do Movimento eu cancelo isto e mais nada. Estou aqui a ser empurrado, mas isto não vai a sítio nenhum».

Foi isto no dia 13, às 19h ou 19h30 da tarde. O Garcia dos Santos ficou aliviadíssimo, pôs as mãos à cabeça e disse: «É pá, isto era uma coisa que não ia dar nada». Estávamos descrentes, mas embalados naquele turbilhão. A 14 foi a «brigada do reumático». Eu e o Casanova estávamos na sala de oficiais da Academia Militar, vimos a cerimónia pela televisão: «Em consequência, as Forças Armadas, representadas pelos seus generais, exigem a exoneração do chefe e do vice-chefe do EMGFA…». Por volta das 11 da noite saímos da Academia Militar e fomos para casa do Monge falar do acontecimento. Juntou-se a nós um capitão oriundo de miliciano, Armando Marques Ramos, que tinha uma ligação estreitíssima com o Virgílio Varela, das Caldas da Rainha. Estávamos ali na conversa, quando às nove da noite chegou um telefonema de Lamego. Era o Manuel Ferreira da Silva, dos comandos, para dizer ao Monge que a malta de Lamego vira na televisão o comandante da Região Militar do Porto na «brigada do reumático», e, superando tudo o que pudesse opor-se-lhes, iam marchar para o Porto, em coluna, para exigir ao comandante a sua demissão imediata. Este rapaz, soube há dias pelo Aprígio Ramalho, um capitão que estava em Viseu, no RI-14, telefonou para lá, para dizer à nossa malta o que se estava a passar, exactamente pelas mesmas palavras. Pensou o Aprígio: «Então é o Movimento…»

Mas o RI-14 não sabia de nada. Eu estava completamente fora deste baralho, não tinha feito ligação nenhuma, para o RI-14 de Viseu. Só que eles ficaram a pensar: «É pá, se calhar é agora, mas não fomos avisados». E tomam posições. Vão ter com o comandante e dizem-lhe: «Meu comandante está a passar-se isto, nós temos que saber se o senhor está connosco». A sorte deles foi que tinham uma relação muito boa com o comandante da unidade, que ficou à rasca. Não sabia de nada e diz-lhes: «Mas o que é que vocês vão fazer. Não se metam em coisas dessas…» «Olhe que é assim. Se houver necessidade temos que o prender». Mas decorreu tudo num ambiente de cordialidade. Felizmente, porque depois do 16 de Março, quando o comandante os chamou – «Ó pá, eu gosto muito de vocês, são todos muito bons rapazes, mas pelo RDM eu tenho que providenciar a vossa transferência de unidade»... Acudiu-lhes o 2.º comandante: «Ó meu comandante, deixe lá isso. Não aconteceu nada, é melhor esquecermos isto». E eles acabaram por continuar na unidade, o que foi providencial para o Movimento.

P. — O Movimento ficou a saber onde é que o 16 de Março provocara rasgões?

Otelo — Pois foi. [Continuando] O Monge recebeu o telefonema e exclamou: «Óptimo. Sim senhor, vamos já providenciar». Este telefonema de Lamego, confirma-o na ideia de que sai uma unidade, saem as outras. Ele e o Casanova ficam entusiasmadíssimos. Pede-me o papelinho que tinha feito, e rapidamente distribuem-se ali missões. «Marques Ramos, tu vais já para as Caldas da Rainha, dizes ao Virgílio Varela para sair com a unidade». E o Marques Ramos que [dentro do Movimento] não tinha nada a ver com as Caldas da Rainha, arranca para de lá trazer a coluna. O Casanova vai a Santarém, convencido de que vai trazer da EPC uma coluna de blindados. Eu devia telefonar para a Escola Prática de Artilharia de Vendas Novas, para eles trazerem uma bataria, que ficava na Ponte à minha espera. Antes de ir à Escola Prática de Infantaria, em Mafra, enfiei uma camisola castanha sobre a farda militar e fui a casa do Vítor [Alves] dizer-lhe: «É pá, está a acontecer isto». O Vítor ficou lixado: «Como é que foste meter-te numa coisa dessas?». «Estou comprometido, agora já não posso sair, pá. Vamos lá ver o que é que isto vai dar.» O Vítor ficou em suspenso e diz: «A minha preocupação agora é o general. Se calhar vão prendê-lo. Temos que avisar o Almeida Bruno».

Eu sabia que o Bruno morava para o Estoril, metemo-nos no meu carro e fomos lá. Por acaso, à passagem do [restaurante] Pickwick, vi entrar um primo meu, o Duarte Guedes Vaz, que era o chefe de gabinete do César Moreira Baptista [ministro do Interior]. Disse ao Vítor: «Caraças, o Guedes Vaz vai ali. Quer dizer que não há ainda alarme nenhum». O Vítor telefonou para casa do Bruno e atendeu a mulher: «O João [Bruno] já me telefonou. Passou o dia todo na Academia». Havia festa de imposição das Torres aos novos cadetes de engenharia e o Bruno, que era comandante do batalhão de cadetes-alunos, jantara lá. Ela não quis dar mais pormenores ao telefone, o Vítor subiu a casa deles, enquanto eu ficava cá fora, no carro, e disse-lhe: «Olha, é capaz de estar aí a acontecer um chatice qualquer. A nossa preocupação é com o general, mas se o Bruno diz que está tudo bem, OK». Fomos a casa do Miquelina Simões, pedi para o acordarem, e ele diz de imediato: «Ó pá, eu vou contigo». Deixei o Vítor em casa e às três da manhã estava eu com o Miquelina Simões na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, com um nevoeiro do caraças. Estava um capitão embrulhado num capote à porta, à minha espera. Eu parei o carro e lancei. «Tu é que és o Vale de Castro?» Ele veio ter comigo: «Ó meu major, não temos cá ninguém. É fim-de-semana. Foi tudo de fim-de-semana. A Escola está vazia. O Marques Júnior está em exercícios em Torres Vedras». «Ó c’um caraças», digo eu.

De facto era sexta-feira à noite. Telefonei para a Escola Prática de Engenharia, atendeu-me o... [?] que até ganhou um festival da canção da RTP. Estava de oficial serviço e eu disse-lhe «Eh pá! Não têm aí uma bataria de artilharia?» Ele responde-me: «Mas o meu major disse anteontem que ficava tudo sem efeito!». Como o Monge ficara em casa, agarrado ao telefone, à espera de receber as nossas indicações, fui para lá. Quando lá chego, cinco e meia da manhã, estou a estacionar, vejo na minha frente abrirem-se as portas de um carro e saírem de lá cinco marmanjos de gabardina e chapéu. Nem parei. O Miquelina a dizer-me: «Olha que a casa do Monge já ficou para trás». «Pois, mas olha e vê quem lá está». «A malta da PIDE!»

P. — Passou por entre os pingos da chuva?

Otelo — Por um triz. Fui então para a Rotunda da Encarnação e daí telefonei para casa do Monge. Atendeu-me a mulher dele, lavada em lágrimas: «Ai que esteve aqui a PIDE e fez uma busca à casa toda». «O Manuel foi preso?». Não, já tinha saído. «Que o Casanova chegou de Santarém, [mas] não trouxe nada e arrancou com o Manuel para as Caldas da Rainha». O Armando chegara lá e levantou o pessoal: «Está tudo a andar». E arrancaram mesmo.

P. — Quanto ao balanço da operação?

Otelo — Foi um choque muito grande. O Vítor [Alves] disse-me: «Aquilo afundou e tu voltas ao teu posto». Apresentei-me na Academia Militar na segunda-feira seguinte, dia 18. Sou chamado ao comandante do Corpo de Alunos, coronel Leopoldo Severo: «Ó Saraiva de Carvalho, sabe que entramos de prevenção rigorosa no dia 16?» E eu: «Já sei, meu coronel. Mas sabe, vou passar sempre os fins-de-semana fora de Lisboa, de modo que fico sem telefone nem rádio. Fico ali tranquilo e mais nada. Só agora é que soube que houve para aí uma bernarda monstra». «Pois é, sabe que nós entramos em prevenção rigorosa? Mandei um cabo a sua casa, e você não estava lá». «Pois, é como lhe disse, não estava em casa». Logo a seguir o Vítor vem dizer-me: «O Melo Antunes está pelos cabelos, quer saltar do Movimento, tens que lá ir explicar-lhe o que é que houve». Fomos ter com ele ao café Londres.

P. — Não fizeram o ponto da situação?

Otelo — Foi o que fizemos na reunião com o Melo Antunes. Fiz o relato do que se passara e a conclusão foi: «Aconteceu, mas não vai acontecer outra vez, de certeza absoluta».

P. — Não houve uma reflexão sobre perdas e ganhos?

V. Lourenço — A unidade das Caldas da Rainha ficou aniquilada e quem lá tinha o poder operacional não era o grupo spinolista, nem o dos ex-milicianos. Eram homens nossos do Movimento. Gerou-se lá uma situação complicada, quando o Armando atirou com o nome do Otelo. Isso fez com que a nossa rapaziada do Movimento, que incluía o comandante da companhia operacional, viesse direita a Lisboa. Por isso, a nossa malta nas Caldas também foi dentro.

O programa, Spínola e a operação militar

P. — Na reunião no Café Londres já há programa?

Otelo — Não. Mas eu concluo: «Vamos fazer uma operação com classe, e desta vez vai ser a sério». Acrescenta o Vítor: «Para isso precisamos de um programa político». E dirige-se ao Melo Antunes: «Podias encarregar-te de elaborar as bases do programa». O Melo Antunes já tinha a passagem marcada para os Açores, no dia 22. «Eu até ao dia 22 faço isso. Deixo-vos cá as bases para as discutirem. Marcamos reunião para dia 22 em casa do Vítor Alves». Assim foi e estava lá a malta da Coordenadora, o Hugo dos Santos, os da Marinha, o [Almeida] Contreiras, o [Vítor] Crespo. Discutimos as bases programáticas e enquanto a reunião prosseguia, vou com o Contreiras levar o Melo Antunes ao aeroporto. O Melo Antunes encontra lá o Álvaro Guerra, que ia despedir-se dele, e apresenta-o ao Contreiras. É através do Álvaro Guerra que chegamos ao programa Limite, da Rádio Renascença, do Carlos Albino, que vai emitir o Grândola, Vila Morena.

P. — Nessa reunião estão os três ramos das FA?

Vítor Alves — Não, o que ficou decidido foi criar uma comissão que ia discutir o programa com os ramos e posteriormente com os generais.

P. — Quando decidem lançar a operação militar?

Otelo — No dia 24 [de Março]. Quem me apoia é o Luís Macedo. Ele consegue reunir o que restava da CC. Havia algumas baixas: o Pinto Soares no hospital, o Vasco Lourenço nos Açores, o Miquelina Simões transferido para Estremoz. Havia uma certa dispersão, mas conseguimos reunir vinte e uma pessoas.

V. Lourenço — No 16 de Março, o Movimento só perde uma unidade, a das Caldas da Rainha. Mas o grupo spinolista foi praticamente neutralizado, ficam todos presos. E o Movimento obteve ainda outra vantagem: dada a perturbação que se verificara em Lamego, eles resolveram transferir o pessoal de lá por várias unidades e isso veio ajudar-nos muito. Porque foram para unidades onde ainda não estávamos implantados. Foi o caso do Valente, na Guarda, do Miquelina em Estremoz, para só citar alguns.

P. — O episódio das Caldas foi definitivamente ultrapassado?

Otelo — Na reunião do dia 24, em Oeiras, em casa do Candeias Valente, éramos vinte e um na sala. O Vítor Alves expôs a posição da CC e mais uma vez eu tive que expor o que fora o 16 de Março.

Vítor Alves — É claro que cada vez que nos víamos depois do 16 de Março havia uma explicação.

P. — Na reunião de 24 de Março discutiram o Programa?

Vítor Alves — Ele teve que ser muito negociado. Havia alguns ramos que não gostavam de certas palavras. Na parte colonial havia quem não aceitasse de maneira nenhuma a autodeterminação.

P. — Quem não queria a descolonização?

Vítor Alves — A Força Aérea, representada na CC, não queria. O Exército tinha os que queriam e os que não queriam.

V. Lourenço — Em Cascais [5 de Março] essa posição já viera ao de cima, quando discutimos «O Movimento, as Forças Armadas e a Nação», onde constava a afirmação de que os povos tinham direito à autodeterminação e independência. O Seabra levanta-se para dizer: «Estou a falar em nome de 200 e tal oficiais da Força Aérea (FA), e …» – «não há tantos oficiais da FA entre nós», disse para comigo – «… é para dizer que não aceitamos a afirmação de que se reconhece o direito à autodeterminação e independência». Aquilo foi um balde de água fria – gelo – na reunião.

P. — Como é que chegam à versão final?

V. Alves — Com muita conversa. A FA tinha esta posição inicial, mas também havia a Marinha, que achava que o programa estava muito aquém do que devia ser.

P. — A Marinha tinha essa posição só na parte colonial?

V. Alves — Em tudo. Na parte colonial queria descolonização e independência. No Exército, a maioria queria a descolonização, aceitava a tese da autodeterminação, mas tínhamos um grande grupo que, sem ser maioritário, não queria essa formulação. Por isso vou a muitas reuniões. Houve muitas conversas para chegarmos ao Programa, que foi a plataforma máxima que se conseguiu obter.

P. — Que vai depois à aprovação dos dois generais?

V. Alves — Não foi bem assim. Depois de termos chegado a um texto que nós considerámos final, contactou-se o general Spínola, através do Otelo, e o general Costa Gomes, através do Vasco Gonçalves. O general Spínola sugeriu inúmeras emendas ao Programa, sugestões, perguntas… «Se isto resultar o que é que se faz ao Governo do Marcello Caetano? E ao Presidente da República?» Cortou também uma série de palavras, que ele entendia terem ressonâncias de discurso do PCP. Por exemplo, a palavra «democrático» desagradava-lhe, a mesma coisa com a designação de «regime fascista».

P. — Foi assim que ele falou?

V. Alves — Falar não sei, mas ele escreveu lá várias coisas do género. No entanto, aceitou o parágrafo todo da autodeterminação.

P. — Devido à experiência da Guiné?

V. Alves — Não, aceitou-o de má-fé, porque na noite do 25 de Abril ele provocou uma reunião para uma releitura do Programa…

V. Lourenço — Começou por propor que se abandonasse o Programa.

P. — Mas ele aceitara o Programa?

V. Alves — Vamos lá a ver, ele tinha um programa próprio.

V. Lourenço — É preciso ter presente que na reunião de 5 de Março, em Cascais, onde participou o grupo spinolista, reforçado com aquele grupo de ex-milicianos, avançámos com a necessidade de haver um programa político: escolhemos os generais, mas eles só seriam aceites se estivessem de acordo com o programa que tivéssemos aprovado. Nessa altura, o grupo dos ex-milicianos disse que não era necessário haver programa, porque tínhamos um general: «Ele diz como é e nós vamos atrás». O que provocou uma discussão muito forte. Lembro-me que havia um estirador e de eu ter subido lá para cima e dizer: «Como é isso? Nós em Óbidos escolhemos dois e estava o Costa Gomes em primeiro lugar» Ele veio à carga e reforçou: «O general Spínola é que vai dizer como é». Estavam as coisas neste pé, quando eu disse: «Espera aí, vamos lá a escolher quem é o general». E, mais uma vez, a escolha primeira caiu no Costa Gomes e depois no Spínola. A diferença foi menor do que em Óbidos [1 de Dezembro], onde fora de 8 para 1, aqui foi de 4 para 1. Mesmo assim, foi claro que a preferência ia para o Costa Gomes. Assumimos então que era necessário um programa político, e ele [Spínola], no dia 25 à noite, quando militarmente estava tudo resolvido, veio com uma nova tentativa de que «não é preciso programa político, que eu é que sei como é».

P. — Isso passou-se já na Pontinha?

V. Alves — Exactamente, na Pontinha. Começou a discussão, interrompeu-se para a Junta de Salvação Nacional ir à televisão, voltaram e continuou-se até às seis da manhã.

V. Lourenço — Terá sido o Charais, virando-se para ele, que lhe disse: «Meu general, a porta está aberta. Se não aceita o Programa como estava combinado, faça favor de sair, que os tanques estão na rua».

P. — O Franco Charais?

V. Alves — Sim, mas foi o Vítor Crespo a sublinhar que os «tanques estavam na rua».

V. Lourenço — E o Spínola respondeu: «Não, não, eu aceito o Programa, por isso é que estou a discuti-lo».

P. — A partir de 24 de Março, passaram à preparação militar?

V. Alves — Para aproveitar o fracasso do 16 de Março, como medida de dissuasão à perseguição, decidimos cortar todas as ligações, telefonemas e trocas de documentos. A ideia que passava para o exterior era a de que o «Movimento acabou». O Otelo ficara encarregue da parte militar e, eu, de construir o programa até ao fim. Ele, como o Vasco disse, é essencialmente o que deixou o Melo Antunes, mas muito amaciado…

V. Lourenço — Nisso veio ao de cima o talento negociador do Vítor Alves.

V. Alves — Quando eu digo ao Otelo, «temos o Programa pronto», há luz verde para a parte operacional. Para nós era fundamental saber «o que queremos», não bastava saber o que não queríamos.

P. — O período de retracção pós-16 de Março terminou com o retomar do Programa?

Otelo — Eu fiz o meu mea culpa, mas retirei do sucedido ilações positivas. Observei no 16 de Março quais as unidades que contrariavam as tropas rebeldes e vi a desorganização total daquelas forças. Concentrou-se na Rotunda da Encarnação, à espera de uma simples coluna militar das Caldas, um manancial de forças incrível, de Cavalaria 7, do BC-5, Legião Portuguesa, PIDE… Eu pensei: se forem muitas colunas militares, a caminhar por várias entradas de Lisboa, dispersam-se as forças do regime, que vão ao milho ao milho, de um para o outro lado. Bloqueio assim essas forças e, entretanto, vou conquistar o objectivo.

Elaborei um esqueleto da operação, com indicação das alíneas a preencher: 1. Situação: a) das forças inimigas, b) das forças amigas, c) reforços e existências;

2. Missão geral;

3. Execução (ideia de manobra): a) o que fazem as forças amigas e o que se espera das forças inimigas, b) centro de comando, transmissões, administração e logística…

Eu sei quem são as forças amigas, mas tenho um problema, não sei quem são as forças inimigas. Tenho que saber quais [são] as unidades militares realmente nossas adversárias. Tenho que saber o que vale a Legião Portuguesa, o que é a PSP, o que é a PIDE, a GNR, em termos militares, em força de viaturas, de armamento. Nos dias que se seguiram ao 24 de Março, eu tive que andar numa dobadoura, correndo riscos, a tirar informações sobre essas forças.

P. — Quando é que tem o plano pronto?

Otelo — Dia 15 de Abril consegui entregar o meu esboço ao Garcia dos Santos, que desesperadamente mo pedia. Eu tinha-lhe pedido um anexo de transmissões, para termos comunicação entre o posto de comando e todas as unidades, e, se possível, também entre elas. Numa semana elaborou o anexo de transmissões. Entregou-me no dia 23 [de Abril].

Neutralização da PIDE e o Regimento de Comandos

P. — Porque não incluíram a PIDE no plano de operações, como força a neutralizar?

Otelo — Estava previsto…

V. Alves — Houve uma unidade que falhou, o Regimento de Comandos da Amadora. Essa unidade é que devia ir tomar a [sede] PIDE e [prisão] Caxias.

Otelo — Houve dois falhanços em relação à PIDE. Havia três objectivos em matéria de áreas de repressão a neutralizar. Além dos já indicados, havia ainda [forte] Peniche, que foi tomado pelo Agrupamento Norte – o conjunto de forças entre o Douro e o paralelo de Coimbra. As colunas iam encontrar-se para formar uma só, sob o comando do Getrudes da Silva, o capitão mais antigo do RI-14. Dei-lhe a ele e ao Corvacho, que era o homem que no Norte coordenava as unidades da Região Militar do Porto, as missões que lhes competiam a 16 de Abril. Designei para a «António Maria Cardoso» [sede da PIDE] um grupo de comandos de dez homens, fortes e combativos, comandados pelo próprio Jaime Neves, numa acção rápida e eficiente, sabendo que só lá haveria uma dúzia de «pides» a fumar uma cigarrada. O Jaime Neves, pensava eu, facilmente levaria a cabo esta missão. Mas na véspera, ou no dia 22, ele diz-me que considera a missão muito arriscada, precisa de mais tempo para organizar a acção. Recorri à outra hipótese: uma das duas companhias de atiradores que o nosso capitão no Regimento de Infantaria 1 [Amadora] tinha garantido. À última da hora, o Júlio do RI-1 telefonou ao Vítor a dizer que não saíam.

V. Alves — A unidade «borregou».

P. — A 23 de Abril o plano de operações está pronto para ser apresentado à Marinha e à Força Aérea?

V. Alves — Que não alinham, mas obtenho a garantia de neutralidade. A Marinha porque considera o programa muito «spinolista». A Força Aérea porque discorda da parte do programa que aborda a questão colonial. Garantem a neutralidade, mais nada.

P. — Porquê ir à Rádio dar o sinal de avançar e por quê a escolha daquelas canções?

V. Alves — A PIDE tinha escutas telefónicas e nós sabíamos que podíamos estar sob escuta permanente. Não podíamos usar nem mesmo os rádios do Exército, pois também esses podiam ficar sob escuta.

P. — Porquê o Rádio Clube Português? E quem escolheu as canções?

Otelo — Eu só pensava: «Preciso de comunicar com a toda a malta, de Norte a Sul do país. Preciso de arranjar um sinal para lhes dizer, que de Chaves a Faro está tudo OK. As missões estão distribuídas e o pessoal, chegada a hora H, deve arrancar». Isto só se consegue com uma emissora e só havia três que cobriam todo o país: a Emissora Nacional, a Rádio Clube Português e a Rádio Renascença. Pensava: «Preciso de um tipo que possa ter acesso à antena e me garanta a emissão do sinal rádio combinado». Lembrei-me de um rapaz que tinha estado na Guiné, como primeiro-cabo no batalhão de Engenharia, e que eu requisitara para locutor da secção Rádio e Imprensa, no Quartel-General do comando chefe. Era o João Paulo Diniz. Soube que ele aparecia em programas do RCP e pensei: «É a altura de ele me pagar o favor que lhe fiz na Guiné». Mandei o Costa Martins tratar do assunto. Mas o Costa Martins veio dizer-me: «Eh pá! O gajo desconfiou de mim; se calhar pensou que era agente da PIDE. Disse que se tu queres falar com ele, era melhor seres mesmo tu a falar com ele».

Só no dia 22 de Abril, à noite, me encontro com o João Paulo Diniz, no Apolo 70 [Lisboa]. Lá estavam todos e também o Costa Neves, que eu indigitara para chefiar o 10º grupo de comandos, que devia tomar o RCP. Eu queria utilizar o RCP como antena nossa. Não podia emitir os comunicados do posto de comando, para o preservar, precisava de uma Rádio para esse efeito. A Emissora Nacional ia-nos dar uma conotação de direita. Expliquei tudo isto ao João Paulo Diniz, até que ele me interrompe, meio aliviado: «Mas ó meu major, o programa é dos Emissores Associados, não é do RCP». Explicou-me que os Emissores Associados tinham aquele tempo de antena, mas que o programa não ia para o país inteiro, só cobria um raio de 100 km em torno de Lisboa. Fiquei a pensar: «Serve. Quando chegar a hora, pões o disco, continuas a emissão e quando acabares despedes-te dos ouvintes e vais para casa. És tu que vais escolher o disco, ninguém sabe o que se está a passar, a não ser nós. Ninguém te vai chatear, só tens que pôr uma música que toda a gente possa ouvir nas calmas e não levante a mínima suspeita». E disse-lhe: «Vou aproveitar-te, porque esses 100 km servem perfeitamente para as unidades da Região Militar de Lisboa e é em Lisboa que estão os objectivos fundamentais. Só preciso agora de saber qual é a música que escolhes, para que os camaradas saibam qual é o sinal». Ele responde-me: «Pode ser o Depois do Adeus, do Paulo de Carvalho, que ganhou o festival da RTP, foi ao da Eurovisão de Brighton, portanto posso pô-lo no ar às 11 da noite». «Porreiríssimo», disse-lhe eu.

P. — Às 23h?

Otelo — Correcto. Às 11 da noite era o primeiro sinal.

V. Alves — Só precisávamos que chegasse até Santarém.

Otelo — Quando ele lançou o Depois do Adeus, todas as unidades que participavam na acção, o BC-5, Santarém, Vendas Novas, etc., sabiam que tinham que se preparar. Às duas da tarde do dia 24 tive o último telefonema da malta de ligação: Álvaro, Sousa e Castro, Rosado da Luz e por aí fora. Tinham cumprido as missões todas. O segundo sinal Rádio que dava a confirmação seria emitido entre a meia-noite e a uma da manhã, no programa Limite, da Rádio Renascença, uma emissora que cobria todo o país. Foi o Santos Coelho, com o Almeida Contreiras, quem fez o contacto com o Carlos Albino. Nesse programa que começava à meia-noite e se prolongava pela madrugada fora, trabalhavam ainda dois locutores, o Paulo Coelho e o Leite de Vasconcelos. O Santos Coelho entrou a dizer: «O chefe quer uma canção do Zeca Afonso, o Venham Mais Cinco ou o Traz Outro Amigo Também». Houve um silêncio: «É impossível. Todas essas canções do Zeca Afonso estão no índex da censura e a PIDE cai logo em cima de quem emita uma canção dessas. Não pode ser». Fica-se ali num momento de indecisão, quando um deles propõe: «Mas se vocês querem uma canção do Zeca Afonso porque é que não escolhem o Grândola Vila Morena? Foi cantado no 28 de Março no Coliseu dos Recreios, estava lá o Zeca, o Adriano Correia de Oliveira, o Fausto, o José Jorge Letria, essa malta toda da "canção de intervenção". Subiram ao palco a cantar o Grândola Vila Morena. O Coliseu levantou-se todo a cantar. Estavam elementos da PIDE, estava lá o corpo de intervenção com o capitão Maltês. Ninguém foi preso, ninguém foi chateado. Se puser no meu programa o Grândola Vila Morena entre a meia-noite e a uma da manhã, a coisa passa, não há problema nenhum».

Aceitaram. É o que vai constar das tais instruções finais ao anexo de transmissões que o Garcia dos Santos me deu. Entregou-mo na terça-feira de manhã, dia 23, eu fui depois passar aquilo a stêncil, num camarada nosso, o Neves Rosa, que tinha um escritório numa transversal à «Duque de Loulé», na «Bernardo Lima» (ou na «Luciano Cordeiro»). Fizemos os exemplares necessários para distribuir pelo pessoal de todo o país e essas últimas indicações seguiram por elementos da ligação, a dois para cada destino, por itinerários diferentes. Se por acaso um fosse apanhado, ficava o outro para concluir a missão.

P. — Houve algum caso de intercepção?

Otelo — Não, nenhum foi interceptado.

P. — Iludiram a vigilância do Governo?

Otelo — Totalmente.

P. — Porquê é que a operação foi lançada às três da manhã?

Otelo — Por várias razões. Às três da manhã podem movimentar-se colunas [militares] em todo o país, não há trânsito, circulam à vontade. Às três da manhã não havia Força Aérea que disparasse sobre qualquer coluna, e eu não confiava na FA. E se fosse possível manter o segredo total da operação até às três da manhã era êxito assegurado. Aqui estão as razões fundamentais da escolha da hora.

Ligações partidárias e internacionais

P. — Quem tinha as ligações aos partidos políticos e contactos com embaixadas?

V. Alves — Não havia qualquer contacto. Era uma decisão de princípio: não contactar os partidos políticos enquanto instituições. Claro que havia elementos dentro do MFA mais ligados a uma ou outra organização política. A decisão foi idêntica quanto a embaixadas. Daí a surpresa, incluindo a da americana, quando foi o 25 de Abril. Nós tínhamos isso de lição. A PIDE vigiava os elementos dos partidos e se eu fosse contactar o Salgado Zenha — como se sabe o Mário Soares estava fora do país — ou alguém do Partido Comunista era imediatamente detectado, como tinham sido ao longo dos anos todas as tentativas de golpe militar, que eram assim abortadas. Decidimos, por isso, mantermo-nos como um movimento autónomo militar para uma pura operação militar.

V. Lourenço — É uma questão, desculpem dizê-lo, que insistem colocar até à exaustão e tem sempre a mesma reposta. Recordo-me que logo a seguir ao 25 de Abril fui cravado aqui pelo Vítor Alves para dar uma primeira entrevista à revista brasileira Visão. O jornalista não acreditava e perguntava-me, «mas o general Spínola…» Eu só lhe dizia: «desculpe, mas ele não teve nada que ver com o Movimento em si». «Mas ele é que é o comandante». «Não foi nada o comandante, nós escolhemo-lo e ele aceitou, mais nada». «E os partidos políticos, o KGB, a CIA«…. «Nada…». E ele não acreditava. Mas não houve nenhuma ligação.

V. Alves — Não houve e havia a preocupação de não haver.

V. Lourenço — Poderá ter havido um grupo de oficiais milicianos, onde estava o António Reis, o Jaime Gama, o Luís Pessoa…

V. Alves — Com os quais nunca contactei…

P. — Mas para entrar na acção tinham de ser contactados.

Otelo — Foram eles que me pediram. Queriam entrar na acção e entraram. O Luís Pessoa, por exemplo, a companhia dele teve por objectivo conquistar e defender as instalações do Porto Alto, onde estavam as antenas do Rádio Clube Português, para garantir a transmissão. O António Reis participou na ocupação da RTP, com a companhia que saiu da EPAM. Eu não os conhecia, mas admiti que quisessem saber no que estavam a entrar, para dar a sua adesão. Eu tive uma reunião com eles, em Oeiras. Perguntaram-me se havia programa político e eu confirmei.

P. — Chegaram a discutir o programa político com eles?

Otelo — Não, limitei-me a dizer que era um golpe de esquerda.

V. Lourenço — É natural que nesse meio tenha havido contactos. O Mário Soares volta e meia diz que sabia umas coisas. O PCP é natural que estivesse informado, mas só em linhas gerais.

V. Alves — Através da Marinha foi com certeza informado de muito do que se estava a passar. Mas nunca distribuímos o Programa.

P. — Qual foi a estratégia para a operação militar?

Otelo — Baseada precisamente naquilo que tinha visto no 16 de Março. Eu tenho tantas forças, quero dar a cada unidade nossa uma missão, nem que seja, como foi, guarnecer a fronteira: substituem a guarda-fiscal e não deixam entrar nem sair viaturas. A unidade mais mediática do 25 de Abril, a EPC, não tinha missão. A finalidade [da sua deslocação] era atrair, como se fosse mel, as forças governamentais. Surtiu efeito. Eu disse ao Salgueiro Maia: «Traz-me o maior número de blindados que possas arranjar. Pões a tropa toda em cima, com os arreios à maneira, capacete, arma, metralhadoras, tudo. Vens pelo itinerário mais importante da capital: chegas às cinco da manhã com aquele estardalhaço todo… e acampas no Terreiro do Paço. Pões ali a tropa toda». «E o que é que faço depois», pergunta-me ele. «Pões um pelotão a guarnecer o Banco de Portugal, outro a guarnecer as instalações da Marconi e ficas ali». «Para quê?». Lá lhe explico: «Para atraíres gente, vem Cavalaria 7, as unidades todas da capital, a PIDE… e tu aguentas com os blindados. Se por acaso vires algum ministro num gabinete do Terreiro do Paço, vais lá e prendes o tipo». A missão para cumprir era esta.

P. — A Marinha esteve para bombardear essa coluna?

Otelo — Isso correspondia aos imponderáveis, com os quais tinha que me debater no posto de comando. A certa altura o Salgueiro Maia liga para o posto de comando: «Óscar, o ministro do Exército [Andrade e Silva] está no seu gabinete». Ele ficara lá a preparar um discurso. Quando começou a haver sinais de alteração, o nosso primeiro comunicado foi transmitido às 4h30, principiou o alarme nas hostes governamentais. O Terreiro do Paço ainda estava vazio e o ministro do Exército pediu protecção. Mas às 5h30 chegou o Salgueiro Maia. O ministro ficou convencido de que as forças do Salgueiro Maia eram forças governamentais. O Salgueiro Maia podia ter prendido imediatamente o ministro do Exército. Mas ele telefonou-me para me dizer: «Preciso aqui de um oficial superior». «Para que é que precisas aí de um oficial superior», pergunto-lhe eu. «Então?! Sou só capitão e o RDM diz que um general só pode ser preso por um oficial superior, no mínimo». «Ó c’um caraças, precisas de um oficial superior para prenderes o general? Estamos em revolução, pá». «Eu sou só capitão e não posso prender um general», insiste ele. Tive que mandar o Correia de Campos, e como o Jaime Neves já tinha regressado das missões e tinha boicotado aquilo tudo, mandei-o também. O Correia de Campos é que me liga pelo rádio para dizer: «Ó pá, tens que dar outra missão aqui ao pessoal, porque o ministro já bateu a asa». É a partir daí que decido dar uma missão ao Salgueiro Maia, que me pede insistentemente para sair dali, que há uma multidão enorme no Terreiro do Paço. Ele tem nesse momento dezenas de viaturas de Cavalaria 7, de Lanceiros 2, e a tropa toda apeada do Regimento de Infantaria 1 que se lhe renderam. Digo-lhe: «Salgueiro Maia, comanda a coluna toda e vai para o Largo do Carmo, onde nós sabemos que já está o Marcello».

V. Lourenço — Mas estava previsto ser o BC-5 que fosse para lá. Mandaste o Fontão fazer o reconhecimento…

Otelo — Sei que pensara que a boa zona para defesa do gabinete ministerial seria Monsanto: com defesa aérea, messe com capacidade de acolhimento…

V. Lourenço — Até porque no 16 de Março foram para lá.

Otelo — Foi por isso que mandei colocar uma bataria da Escola Prática de Artilharia em posição, no alto do Cristo-Rei. Se fossem para lá, com o Marcello Caetano, eu tinha a possibilidade de os ameaçar com a peça de artilharia e obter a rendição. Quando ouvi que tinham ido para a ratoeira do Largo do Carmo, então disse: «Vou pegar no Salgueiro Maia e na força toda dele, subir ao Carmo, e cercá-lo».

P. — A ida para o Carmo foi uma asneira?

Otelo — Pois foi. Julgo que foi o Silva Pais quem deu esse palpite.

P. — Refugiaram-se numa tropa fiel, a GNR?

Otelo — Como já não tinham confiança nas unidades militares, ali sentiam-se protegidos. O próprio ministro do Exército [Andrade e Silva], depois de ter fugido do Terreiro do Paço, foi para Lanceiros 2, na Calçada da Ajuda, e o Henrique Tenreiro também fugiu para lá. Acolheram-se a Lanceiros 2, tida como unidade de confiança do Governo, mas isso provocou a reacção do major Campos de Andrada, que era do Movimento, e de outros militares. Começaram a pressionar o Pinto Bessa, o coronel que comandava Lanceiros 2…

P. — Porquê o posto de comando na Pontinha?

Otelo — Foi uma proposta do Lopes Pires e do Garcia dos Santos. Depois de o Eanes ter sido mobilizado, foi preciso alguém para o substituir. O Lopes Pires, que era do Regimento de Engenharia da Pontinha, ficou com a parte das transmissões, com o Garcia dos Santos. Em Fevereiro de 1974 foi transferido para a Academia Militar, onde já estava o Garcia dos Santos. Mas quem pesou na decisão final foi o Luís Ferreira de Macedo, pela segurança que oferecia para posto de comando.

P. — Como se fez a passagem do poder?

V. Alves — Simbolicamente, pela entrega do poder por parte do Marcello Caetano ao Movimento das Forças Armadas, na pessoa do Spínola. Mais uma vez [o Salgueiro Maia] seguiu o Regulamento de Disciplina Militar.

V. Lourenço — Ainda me lembro da tua afirmação em 1975: «Se o Vasco Lourenço cá estivesse a Junta de Salvação Nacional nunca seria aquela».

V. Alves — Nós tivemos que engolir aquele sapo, mas foi positivo para credibilizar interna e externamente o golpe.

P. — Credibilizar junto de quem?

V. Alves — A presença do general Spínola e do general Costa Gomes estava assente desde Óbidos. Quanto aos outros, teve efeito junto dos dois outros ramos das Forças Armadas. A Junta foi escolhida por proposta dos ramos militares: dois por cada ramo, tendo o Exército mais um, Jaime Silvério Marques. Foi por indicação do Vasco Gonçalves, de entre os três que se perfilavam: Rosa Garoupa, Silvino e Jaime Silvério Marques. Escolheu este por ser mais «honesto». A Força Aérea indicou o Galvão de Melo, uma escolha do Costa Martins, e o Diogo Neto, escolha do Spínola, por ser «um pilotaço». Houve um problema com as patentes, levantado pelo Galvão de Melo, que era coronel. Só aceitava fazer parte da Junta num elenco de oficiais-generais. A solução foi arvorá-lo em general e foi assim que o Rosa Coutinho, que era capitão-de-fragata, e o Pinheiro de Azevedo, capitão de mar-e-guerra, passaram a almirantes.

P. — Mas a Marinha e a Força Aérea não ficaram de fora?

V. Alves — Enquanto ramos, assim foi, mas a título individual houve alguns elementos que entraram na Comissão Coordenadora. Pela Marinha o Vítor Crespo, o Almada Contreiras, o Bento de Carvalho, o Simões Teles. Da Força Aérea havia o Costa Martins, o Costa Neves, o Moura, o Mendonça de Carvalho, o Santos Silva.

P. — E a credibilização externa?

V. Alves — Quando falei de credibilização externa referia-me a eventuais problemas com a OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte] e a escolha da Junta teve a ver com isso, embora o Vasco pretendesse que não precisávamos de generais para nada. Sempre defendeu essa posição.

V. Lourenço — Foi em Setembro de 73, em casa do major Mendonça Frazão, que eu avancei com a proposta: «Isto só lá vai com um golpe militar». É quando alguém me pergunta: «Onde é que tens os generais?» E eu respondo-lhe: «Não tens generais, não tens brigadeiros, não tens coronéis. Talvez nem tenhas majores. Mas garanto-te que vais ter capitães».

* Esta entrevista realizou-se em Abril de 2004, tendo sido conduzida pelos jornalistas Ana Sá Lopes e António Melo. Devido à sua extensão nunca foi publicada na íntegra, tal como aqui e agora se faz.

Segunda-feira 23 de Abril de 2007

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