sexta-feira, 24 de julho de 2009

TEXTO p/ DEBATE 2 - História Politica - A Formação Histórica do Capitalismo

HISTÓRIA POLITICA


A FORMAÇÃO

HISTÓRICA DO

CAPITALISMO


I - AS ORIGENS AGRÁRIAS DO CAPITALISMO

O processo que deu origem ao capitalismo está ligado às transformações econômicas e sociais que foram responsáveis, num determinando momento e lugar na história, pela formação de duas espécies bem distintas de possuidores de mercadorias, que passaram a se confrontar e relacionar: de um lado, o proprietário de dinheiro, de meios de produção e de meios de subsistência, empenhado em aumentar a soma de valores que possui, comprando a força de trabalho alheia; de outro, os trabalhadores livres, vendedores de sua própria força de trabalho. A chave, portanto, para o surgimento do sistema capitalista é o aparecimento de uma classe de trabalhadores livres. Livres em dois sentidos: em primeiro lugar, pelo fato de não mais serem parte integrante dos meios de produção, deixando de estar submetidos à exploração na condição de escravos ou servos; em segundo lugar, livres porque não são donos dos meios de subsistência e de produção (como a terra e os instrumentos de trabalho), como os camponeses (pequenos proprietários) autônomos, estando, assim, totalmente separados deles. O sistema capitalista pressupõe a dissociação entre os trabalhadores e a propriedade dos meios pelos quais realizam o trabalho.
O processo que cria o sistema capitalista consiste, fundamentalmente, no processo que retira do trabalhador a propriedade de seus meios de trabalho, transformando em capital os meios sociais de subsistência e os de produção e convertendo os produtores diretos em trabalhadores assalariados. A chamada acumulação primitiva é o processo histórico que originou o capitalismo, ao dissociar o trabalhador dos meios de produção. É considerada primitiva porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção capitalista. A estrutura econômica da sociedade capitalista nasceu dos escombros da sociedade feudal. A decomposição desta liberou elementos para a formação daquela. O produtor direto, o trabalhador, só pôde dispor de sua pessoa depois que deixou de estar vinculado à gleba e de ser escravo ou servo de outra pessoa. Para vender livremente sua força de trabalho, levando sua mercadoria a qualquer mercado, tinha ainda de livrar-se do domínio das corporações, dos rígidos regulamentos a que estavam subordinados, no interior destas, os aprendizes e oficiais e das prescrições com que entravavam o trabalho. Um dos aspectos centrais do movimento histórico que transformou os produtores em assalariados é a libertação frente à servidão e à coerção corporativa. Mas os que se emanciparam só se tornaram vendedores de si mesmos depois que lhes roubaram todos os seus meios de produção e os privaram de todas as garantias e direitos baseados na tradição que as velhas instituições feudais asseguravam à sua existência. A história da expropriação sofrida pelos trabalhadores foi inscrita a sangue e fogo nos anais da humanidade.
O processo que produziu o assalariado e o capitalista tem suas raízes na nova forma de promover a sujeição do trabalhador: o trabalho assalariado, a forma de exploração capitalista que substituiu a servidão, o tipo dominante de exploração feudal. Marcam época, na história da acumulação primitiva, todas as transformações que servem de alavanca à classe capitalista em formação, sobretudo aqueles deslocamentos de grandes massas humanas, súbita e violentamente privadas de seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho como levas de proletários destituídos de direitos. A expropriação do produtor rural, do camponês, que ficou assim privado de suas terras e meios de trabalho constitui a base de todo o processo. A história dessa expropriação assume diversas configurações nos diferentes países e épocas, mas é na Inglaterra do século XVI que encontramos a forma clássica do processo originário de expropriação da força de 2 trabalho humana no sentido capitalista.
A origem histórica do capitalismo, pois, está associada ao processo de transformação da estrutura agrária ocorrido na Inglaterra no período compreendido entre os séculos XV e XVIII, através da disseminação da política de cercamentos ("enclosures") das terras, transformando em propriedades fechadas, de caráter particular, exclusivo e excludente os campos abertos e as terras comuns, tradicionalmente utilizadas pelos camponeses, colonos, posseiros e gente sem posses por causa da existência, desde a Idade Média, dos direitos consuetudinários de uso comum da terra. A crise geral do feudalismo levou à formação, na Inglaterra, de um campesinato livre e obrigou a que parte significativa da classe proprietária ("gentry") passasse a utilizar a terra com vistas à produção. O desenvolvimento do comércio, em especial aquele associado à manufatura de lã, cujo preço valorizou-se significativamente no período, forçou os grandes proprietários e arrendatários a investir nos melhoramentos ("improvement") para competir. Os imperativos do mercado estimulam o aumento da produtividade, e o processo cria uma agricultura altamente produtiva. Há uma concentração incomum da terra nas mãos de latifundiários. As forças competitivas foram fator fundamental na expropriação dos produtores diretos: os cercamentos representaram a extinção, com ou sem a demarcação física das terras, dos costumes em comum e dos direitos consuetudinários, visando a criação de ovelhas e o cultivo de terras aráveis com maior produtividade. Surgia uma nova concepção de propriedade privada: absoluta e exclusiva, porque promovia a exclusão de indivíduos e comunidades da apropriação dos meios necessários à subsistência.
Os open fields (campos abertos) eram terras em mãos de vários proprietários: uns possuindo o solo como proprietários livres, outros ocupando-o por uma espécie de arrendamento perpétuo, na qualidade de arrendatários. Suas propriedades estavam dispersas e misturadas, ou seja, subdivididas em um grande número de parcelas que se intercalavam e emaranhavam. O único modo possível de exploração era a exploração de acordo com regras comuns, que preservavam velhos métodos de cultivo, tolhiam a iniciativa individual, pois o cultivo era decidido numa assembléia da paróquia ou comunidade. Por seu turno, as common lands (terras comuns) eram uma propriedade coletiva. Eram as terras baldias, incultas e, de uma certa forma, carentes de valor, de pequena fertilidade, mas um recurso constante para as populações mais pobres, que, hereditariamente, estabeleceram os direitos de pastagem, de colher lenha e cortar madeira para construção e de pescar. Erguiam-se cabanas humildes nas quais se instalavam elementos oriundos das camadas inferiores, não proprietários ou posseiros, sem nenhum direito estabelecido, apenas por um consentimento por parte dos senhores feudais: eram pequenos colonos e posseiros, espécie de mão de obra errante, marginal, que os proprietários mobilizavam nas épocas de colheita, constituindo-se num exército de reserva de mão de obra.
Os cercamentos, portanto, representaram a reunião dos lotes de terra dispersos numa área contínua que permitiria ao seu proprietário isolá-la das demais propriedades ou posses, transformando a terra em mercadoria e criando condições para a especialização da produção, a intensificação da divisão social do trabalho agrícola e a penetração mais intensa do capital no campo. Preponderaram os cercamentos de grandes domínios, que tiveram impacto enorme sobre a população camponesa. De fato, a indústria da lã exigia constantes alargamentos dos campos criatórios, e esta atividade, como se sabe, restringe a quantidade de mão de obra empregada. Certo pregador, no século XVI, já dizia: "Lá onde viviam, há pouco tempo, inúmeros camponeses, agora não há mais do que um pastor e seu cachorro".
O processo violento de expropriação do campesinato inglês recebeu terrível impulso no século XVI, com a Reforma protestante e o imenso saque dos bens da Igreja Católica que a acompanhou. À época da Reforma, a Igreja Católica era proprietária feudal de grande parte do solo inglês. Os bens eclesiásticos foram amplamente doados a vorazes nobres favoritos da Corte ou vendidos a baixo preço a especuladores, proprietários ou burgueses, que expulsaram em massa os antigos moradores hereditários. O direito legalmente explícito dos 3
lavradores empobrecidos a uma parte dos dízimos da Igreja também foi tacitamente confiscado. A disseminação da miséria compeliu a monarquia inglesa a reconhecer oficialmente o pauperismo, introduzindo, através da Lei dos Pobres, o imposto de assistência aos desvalidos. Ao mesmo tempo surgia toda uma legislação sanguinária contra a vadiagem. Os que foram expulsos de suas terras com a dissolução das vassalagens feudais e com a expropriação violenta e intermitente - proletários sem terras e sem direitos - não podiam ser absorvidos pela manufatura nascente na mesma rapidez com que se tornavam mão de obra livre e disponível. Bruscamente arrancados das suas condições habituais de existência, não podiam enquadrar-se, da noite para o dia, em outra forma de trabalho, no contexto de um mercado em profunda transformação. Muitos se transformaram, por força das circunstâncias, em mendigos, ladrões, vagabundos. E foram punidos por isso. A legislação os tratava como pessoas que tivessem escolhido voluntariamente o caminho do crime e da indigência, como se de sua vontade dependesse prosseguirem trabalhando nas velhas condições que já não mais existiam.
O pequeno agricultor, conhecido na Inglaterra como yeoman, para o qual a terra era o seu sustento, assistiu impotente a essa reforma fundiária. O yeoman por excelência era o camponês livre (freeholder), que possuía o campo no qual vivia e que explorava pessoalmente. Mas a denominação se estendia também ao arrendatário hereditário (copyholder), cuja família cultivava o mesmo solo há várias gerações. Estes acabaram por desaparecer como classe no século XVIII, pois perderam totalmente os direitos sobre suas pequenas propriedades. Com eles também desapareceram os colonos e posseiros, além dos pequenos fabricantes de tecidos independentes, todos sendo praticamente objetos do mesmo destino: grandes massas de "vagabundos" e indigentes ou mão de obra assalariada nos campos e nas cidades, trabalhando nas propriedades cercadas em função da produção de lã e nas fábricas de tecidos.
O mercado passou a ser determinante e regulador principal da reprodução social, penetrando inclusive na produção da necessidade mais básica da vida: o alimento. Capital e trabalho passaram a ser profundamente dependentes do mercado para obter as condições mais elementares de sua reprodução: os trabalhadores precisam dele para vender a força de trabalho e adquirir os meios de sua subsistência; os capitalistas, para comprar a força de trabalho e os meios de produção, bem como para realizar seus lucros. Nas sociedades anteriores ao capitalismo, os produtores diretos permaneciam de posse dos meios de produção, particularmente a terra, e o trabalho excedente era expropriado através da coerção direta (meios extra-econômicos), exercida por grandes proprietários ou pelos Estados, que empregavam sua força superior – o poder militar, jurídico e político. Somente no capitalismo o modo de apropriação passa a se basear na desapropriação dos produtores diretos legalmente livres, cujo trabalho excedente é expropriado por meios puramente econômicos: desprovidos de propriedade, os produtores diretos são obrigados a vender a força de trabalho para sobreviver, e os capitalistas podem apropriar-se do trabalho excedente dos trabalhadores sem necessariamente exercer uma coação direta.
A expropriação e a expulsão de uma parte da população rural liberou trabalhadores, seus meios de subsistência e seus meios de trabalho em benefício do capital, criando as condições para o desenvolvimento do mercado interno e da indústria capitalista. Antes, a família camponesa produzia e elaborava os meios de subsistência e as matérias primas, em grande parte, consumidos por ela mesma. Esses meios de produção e matérias primas foram transformados em mercadorias, que passam a abastecer o mercado de bens primários e de manufaturados. Fios, tecidos de linho, panos grosseiros de lã - materiais antes à disposição da família camponesa e produzidos para seu próprio consumo - viravam artigos de manufatura cujo mercado consumidor encontrava-se exatamente nos distritos rurais. À expropriação dos camponeses que trabalhavam antes por conta própria e ao divórcio entre eles e seus meios de produção corresponderam a ruína da indústria doméstica rural e o processo de dissociação entre manufatura e agricultura. 4

II - AS TRANSFORMAÇÕES NA INDÚSTRIA

Preparou-se, desta forma, o caminho para as intensas transformações das forças produtivas na Inglaterra, responsáveis pela eclosão da chamada Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, transformações estas bastante nítidas na substituição das manufaturas pelas indústrias têxteis, do trabalho artesanal pelo da máquina, e pela ascensão do modo capitalista de produção. A Revolução Industrial foi um fenômeno predominantemente inglês, graças a uma série de fatores, responsáveis pela maior acumulação primitiva de capital na fase de transição feudalismo/capitalismo, tais como: a expropriação dos trabalhadores rurais de seus meios de subsistência, liberando grande quantidade de mão-de-obra para a industrialização; a expansão dos mercados consumidores, tanto no nível interno como externo (exploração colonial); a revolução técnica que possibilitou a mecanização da produção de tecidos, a utilização do algodão no lugar da lã, a invenção da máquina a vapor e o desenvolvimento dos meios de transportes, com o aparecimento das ferrovias. Além disso, na Inglaterra, a existência de um grande número de minas de carvão e de rios navegáveis favoreceu sobremaneira tanto o fornecimento de combustível para as fábricas quanto o escoamento das matérias primas e das mercadorias produzidas.
Por Revolução Industrial convencionou-se, portanto, designar o processo de transformações econômicas e sociais, caracterizadas pela aceleração do processo produtivo e pela consolidação da produção capitalista. A introdução do sistema de fábricas, em substituição ao artesanato e à manufatura, e a crescente mecanização das forças produtivas iniciaram-se na Inglaterra em fins do século XVIII, espalhando-se, posteriormente, ao longo dos séculos XIX e XX, para vários outros países. A principal transformação teria sido a substituição da ferramenta, até então empunhada pela mão humana, por mecanismos cada vez mais complexos, acionados pelo homem, agora transformado em verdadeiro autômato. Assim, a ferramenta, acoplada a um implemento mecânico (motor), dá origem a uma máquina-ferramenta, responsável pelo trabalho industrial e por um aumento da produção, cujos limites não são mais definidos pela resistência física do operário, mas da própria máquina. Impõe-se também uma revolução na produção de energia, surgindo, em decorrência, a máquina a vapor, capaz de gerar toda a energia necessária consumindo apenas água e carvão e com uma potência que poderia ser inteiramente controlada, uma diferença substancial em relação às máquinas acionadas por energia hidráulica, sujeitas ao fluxo da natureza, que impossibilitava o seu controle, e dependentes de instalação próxima aos cursos d'água.

Principais avanços da maquinofatura

Em 1733, John Kay inventa a lançadeira volante, sistema mecânico que possibilitou tecer peças mais largas e acelerou as operações da tecelagem, provocando a redução da mão de obra, pois bastava um teleção para realizar o trabalho antes feito por dois ou mais trabalhadores. Em 1767, James Hargreaves inventa a spinning jenny, que permitia a um só artesão fiar 80 fios de uma única vez. A jenny era pequena o suficiente para poder ser instalada numa casa, e não havia necessidade de grande força física para operá-la. Em 1769, Richard Arkwright inventa a water frame, que utilizava a água como força motriz, obrigando a que fosse instalada numa fábrica ou num moinho, próximos a cursos d’água. O fio fabricado pela water frame, devido ao uso de cilindros para esticá-lo, era forte o suficiente para produzir tecidos totalmente de algodão, ao mesmo tempo mais resistentes e mais baratos. Esta máquina assegurou o triunfo do sistema fabril na indústria algodoeira, 5 deixando para trás os demais ramos têxteis que continuaram fiéis ao sistema doméstico.
Em 1779, Samuel Crompton inventa a mule, uma combinação da water frame com a spinning jenny, produzindo fios finos e resistentes. Adaptava-se a toda sorte de tecidos, principalmente as musselinas, até então importadas do Oriente. Depois de aperfeiçoada, foi posta para funcionar por meio da força hidráulica, mais tarde, através da máquina a vapor. Assim, acarretou a decadência do sistema doméstico e a ascensão do sistema de fábrica. Com essa máquina, desenvolvida de acordo com as necessidades do mercado, a fiação tornou-se definitivamente uma operação industrial, concentrada e cada vez mais automatizada, deixando de ser dependente da habilidade manual do artesão. Em 1785, Edmond Cartwright inventa o tear mecânico, com o objetivo de transferir, para o processo da tecelagem, o progresso técnico já obtido com a fiação, pois grandes quantidades de fios de algodão sobravam no mercado, sem haver mãos para tecê-los. Foram necessários muitos aperfeiçoamentos até que a máquina de tecer estivesse em condições de funcionar de forma eficaz e automática. Os industriais tiveram ainda de enfrentar a violenta resistência dos tecelões, que se insurgiram contra as demissões e o controle do processo de trabalho, já que a produção ficou dependente da máquina e de quem tinha o poder de dispor sobre ela.

O motor a vapor

As primeiras máquinas a vapor foram construídas na Inglaterra durante o século XVIII. James Watt é reconhecido como seu mais importante inventor. As máquinas a vapor bombeavam a água acumulada para fora das minas de carvão. Eram tão importantes quanto as máquinas que produziam tecidos, pois possibilitaram o uso do carvão mineral em larga escala, tendo em vista que a utilização desenfreada do carvão vegetal estava levando à escassez de florestas na Inglaterra. A extração da água das minas aumentou enormemente sua produtividade: em 1800, os ingleses produziam 10 milhões de toneladas de carvão, ao passo que a França, o competidor mais próximo, produzia menos que 1 milhão. A partir de então, passou a existir uma fonte de energia mecânica, totalmente independente das forças da natureza ou dos caprichos do clima, independente mesmo dos imperativos geográficos. Ainda assim, a aplicação em larga escala do invento só se fez no século XIX, pois exigia material de ferro que os industriais não fabricavam de forma satisfatória. O seu emprego continuou dependente do aperfeiçoamento da indústria metalúrgica, que só veio a se desenvolver efetivamente com o advento das estradas de ferro. Foram elas que impulsionaram a produção do ferro.
Graças a essas máquinas, a produção de mercadorias aumentou muito. E os lucros dos burgueses donos de fábricas cresceram na mesma proporção. As fábricas se espalharam rapidamente pela Inglaterra e provocaram mudanças profundas no modo de vida e na mentalidade de milhões de pessoas, numa velocidade espantosa. O mundo novo do capitalismo, da cidade, da tecnologia e da mudança incessante triunfou. 6

As consequências sociais

A Revolução Industrial alterou profundamente as condições de vida do trabalhador braçal, provocando inicialmente um intenso deslocamento da população rural para as cidades, com enormes concentrações urbanas. A produção em larga escala e dividida em etapas distanciaria cada vez mais o trabalhador do produto final, já que cada grupo de trabalhadores passa a dominar apenas uma etapa da produção. Na esfera social, o principal desdobramento da revolução foi o surgimento do proletariado urbano (a classe operária), como classe social definida. Vivendo em condições deploráveis, tendo o cortiço como moradia e submetido a salários irrisórios com longas jornadas de trabalho, o operariado nascente era violentamente explorado, devido também à inexistência de leis que regulassem as relações de produção e que protegessem o trabalhador da sede de lucro dos industriais.
O desenvolvimento das ferrovias absorveu grande parte da mão de obra masculina adulta, provocando em escala crescente a utilização de mulheres e crianças como trabalhadores nas fábricas têxteis e nas minas de ferro e carvão. A indústria algodoeira têxtil, ao introduzir a escravidão infantil e de mulheres na Inglaterra, impulsionava ao mesmo tempo a transformação definitiva da escravidão negra nos Estados Unidos em um sistema de exploração mercantil. De fato, a escravidão dissimulada dos assalariados na Europa convivia com e, em grande parte, ainda dependia da escravidão aberta, sem máscaras e sem freios, adotada na América. Além disso, o agravamento dos problemas socioeconômicos, como o desemprego e a fome, foram acompanhados de outros problemas, como a prostituição e o alcoolismo.
As características gerais do novo processo de produção introduzido pela Revolução Industrial podem ser apontadas da seguinte maneira:
- produção realizada em grandes unidades fabris, onde predomina a mais intensa divisão do trabalho;
- separação entre capital e trabalho, pois o proprietário dos meios de produção (máquinas, equipamentos, instalações, matérias-primas etc) não é o produtor direto. Este, agora completamente expropriado dos meios próprios de subsistência, necessariamente tem que vender sua força de trabalho em troca de um salário;
- produção realizada para um mercado desconhecido, cuja demanda cresce na proporção em que ocorra um barateamento do custo unitário da própria mercadoria produzida (a produção passa a comandar o mercado);
- aumento sem precedentes na produção de mercadorias;
- concentração da produção industrial em centros urbanos, uma vez que as novas fontes de energia, necessárias ao funcionamento do maquinismo, libertaram o sistema de fábricas dos fatores naturais, como o vento (energia eólica), queda de água (energia hidráulica), etc. 7
Com o emprego da energia fornecida pela máquina a vapor e, posteriormente, a energia elétrica ou a utilização dos derivados do petróleo, as fábricas puderam concentrar-se;
- o surgimento de um novo tipo de trabalhador (o operário), que trabalha em conjunto no interior das fábricas, realizando uma produção onde predomina a mais intensa divisão do trabalho. O sistema de fábricas, portanto, socializou a produção, muito embora tenha sido responsável pela concentração da riqueza nas mãos dos capitalistas.

III - O PENSAMENTO LIBERAL

Para fazer com que o capitalismo se tornasse a nova ordem societária dominante, era preciso ainda que a hegemonia burguesa se consolidasse através de uma nova ideologia dominante. A visão de mundo burguesa e capitalista forjou-se como dominante ao longo de séculos na Europa, desde a crise geral do feudalismo, que propiciou o aparecimento de movimentos culturais e religiosos como o Renascimento e a Reforma, marcados por pontos de vista filosóficos representativos dos interesses burgueses, até as revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII, quando então as ideias liberais deram forma mais acabada às aspirações da burguesia e contribuíram de maneira decisiva para a tomada do poder político pelos proprietários e industriais capitalistas. O liberalismo, portanto, é o conjunto de ideias que serviram para dar sustentação teórica e ideológica à ação da burguesia no momento de sua ascensão social numa sociedade marcada ainda pelos ditames de uma ordem jurídico-política feudal, dando forma a seus interesses na luta contra os privilégios da nobreza e contra os princípios e práticas mercantilistas. Liberdade era a palavra-chave em oposição aos monopólios de comércio, de produção e ao controle da sociedade perpetrado pelo Antigo Regime e pela Igreja Católica, responsáveis pela restrição do exercício de cidadania. Os séculos XVII e XVIII foram séculos de intensa transformação, com a burguesia conquistando vitórias efetivas na luta pelo poder na Europa e na América, destronando os representantes da velha ordem aristocrática, o que se deu de modo categórico e exemplar com a Revolução Francesa. Foram séculos revolucionários e definidores da nova ideologia dominante, representativa dos interesses da classe burguesa emergente, através das contribuições teóricas de diferentes pensadores, entre filósofos, economistas, juristas e políticos.
THOMAS HOBBES (1588-1679), pensador inglês do século XVII, autor de Leviatã (1651), foi um dos primeiros intelectuais que, inseridos no contexto de ascensão política da burguesia e de conflitos religiosos irreconciliáveis, propôs que a única maneira de salvar a autoridade real e garantir a paz social seria o seu desligamento por completo da religião. Hobbes vira preparar-se e depois eclodir a guerra civil que culminou na execução do rei Carlos I em 1649, na Inglaterra. Hobbes insurgiu-se contra as bases ideológicas do ideário tradicional, fundamentados no pensamento clássico de Aristóteles e no providencialismo cristão, segundo os quais a base da ação política ou, mais genericamente, da ação humana, era até então a idéia de um bem natural ou sobrenatural. Refletindo no contexto da Guerra Civil na Inglaterra, Hobbes concluiu que o conflito de opiniões sobre o bem havia produzido a guerra de todos contra todos, havia produzido o mal absoluto, pois cada indivíduo vivia tomado pelo medo da morte. Para ele, a ideia grega de uma natureza boa, constituída por um conjunto de bens hierarquizados que a cidade faria os homens compartilhar, estava completamente destruída. Este estado de barbárie (a "guerra de todos contra todos") seria a condição natural da humanidade e cada um, no estado de natureza, era juiz exclusivo da conduta necessária à preservação de sua vida. Isto equivalia a dizer que cada indivíduo possuía um direito sobre todas as coisas e até sobre o corpo dos outros (segundo Pascal, "cada eu é inimigo e gostaria de ser o tirano de todos os demais"). Somente renunciando a este direito é que cada um poderia, no tocante a si mesmo, estancar a fonte da guerra. Assim, cada qual deveria obrigar-se, por contrato, com cada semelhante a renunciar a esse 8
direito ilimitado, transferindo-o para aquele ou aqueles a quem se confiaria a soberania, a quem caberia promulgar as leis necessárias à paz civil e garantir, mesmo que através do uso da força, a sua observância, cuja única garantia estava na ameaça do castigo (Hobbes: "os contratos que a espada não garantia não passavam de palavras ao vento").
Desta forma, Hobbes deduziu a necessidade do absolutismo, para que os homens saíssem do estado natural de guerra e vivessem em paz, sendo que o fundamento de sua soberania absoluta era o direito do indivíduo. Na linguagem moral e política elaborada por Hobbes e que é a linguagem inaugurada pelo liberalismo, o direito assumiu o lugar do bem. O poder, assim, deixava de ser legitimado na teoria do direito divino para sê-lo na natureza humana, no direito do indivíduo, que abre mão de seu direito sobre todas as coisas (estado de guerra) para repassá-lo ao soberano, fundando, assim, outra categoria inerente ao pensamento liberal: a representação, a qual seria legítima se resultante de um contrato, um pacto social, uma convenção fundada no consentimento expresso dos que passam a obedecer o soberano sob novas regras jurídicas e políticas. Inauguram-se ao mesmo tempo, na perspectiva de Hobbes, a sociedade civil, lugar da "igualdade" dos direitos, e o Estado, o instrumento criado por essa sociedade para assegurar a ordem e a paz, ou seja, o instrumento coercitivo necessário à imposição da ordem burguesa, que desejava anular os conflitos de classe, destituindo a velha aristocracia do poder, ao mesmo tempo em que promovia violenta repressão sobre as revoltas camponesas, garantindo assim a prevalência dos interesses burgueses.
Outro importante pensador liberal e contratualista do século XVII, também inglês, foi JOHN LOCKE (1632-1704). Podemos identificar em John Locke um dos principais fundadores do ideário liberal clássico, por isso mesmo considerado o ideólogo maior da Revolução Inglesa do século XVII. Com Locke o Estado de Direito burguês surge com a missão central de proteger a propriedade privada, "direito natural dos homens", a ser preservado de todas as formas. Isto porque a base social do indivíduo encontrar-se-ia no trabalho e na propriedade. Como Hobbes e também em oposição à doutrina aristotélica, Locke enxergava a existência do indivíduo como anterior ao surgimento da sociedade e do Estado. No estado de natureza, os homens viveriam em estado de perfeita liberdade e igualdade, e a propriedade já configurava como um direito natural do indivíduo, pois a terra teria sido dada por Deus em comum a todos os homens, os quais a transformavam em propriedade ao trabalharem sobre ela. Logo, o trabalho era o fundamento originário da propriedade. Segundo Locke, todo homem é proprietário de sua pessoa, salvo no caso do contrato (portanto, pode existir a escravidão) e toda a propriedade seria fruto de um trabalho prévio. Toda propriedade em uso é legítima (atributo demonstrável logicamente, mas não historicamente), ou seja, toda a propriedade é legítima por ser fruto do trabalho e não por causa de um privilégio de nascimento, próprio da nobreza e do clero no feudalismo. Locke desenvolve, assim, uma crítica ao ócio, atributo da nobreza feudal, cuja fonte de prestígio e domínio era a ostentação do luxo e da riqueza. Ao mesmo tempo, aprofunda a idéia inaugurada pelo protestantismo de Calvino, difusor de uma nova ética do trabalho, a enxergar a atividade produtiva humana como orientadora de uma nova moral e de um novo código de conduta entre os homens, responsáveis pela contenção do jogo e dos prazeres mundanos, assim como pela propensão ao acúmulo de riqueza, expressão da predestinação divina. Na perspectiva de Locke, portanto, a acumulação de riqueza e o lucro eram também considerados frutos do trabalho humano, materializando a troca do desperdício (a produção do excedente, extrapolando o necessário à sobrevivência) pelo dinheiro. O homem seria naturalmente racional, buscando sempre maximizar os frutos do trabalho, o que expressa uma visão tipicamente burguesa. A moeda promoveria a naturalização deste processo econômico, justificando e legitimando até a existência da propriedade improdutiva, a qual, se não fosse trabalhada, poderia ser comercializada, transformada em mercadoria e em dinheiro.
9 .Segundo Locke, o homem teria direito natural, então, à propriedade, que, sendo fruto do trabalho, faria deste direito algo inalienável e sagrado, além de ser a condição fundamental para a participação política na sociedade imaginada pelos liberais. A necessidade de superar inconvenientes como a violação da propriedade teria levado os homens a se unir e estabelecer entre si o contrato social, que realizaria a passagem do estado de natureza para a sociedade política ou civil, cujos objetivos principais seriam a preservação da propriedade e a proteção da comunidade. O projeto liberal fez do direito de propriedade, e tendeu a fazer da economia em geral, a base da vida social e política: as regras organizadoras da vida social teriam de nascer rigorosamente do direito do indivíduo solitário e só poderiam encontrar seu fundamento na relação desse indivíduo com a natureza. Simultaneamente, porém, a relação de trabalho entre indivíduo e natureza fez surgir um mundo distinto do dos direitos do indivíduo: o mundo do valor, da produtividade do trabalho, da utilidade. O direito de propriedade, assim, deixava de ser olhado como o direito natural fundamental do homem e passava a ser visto como o meio de preservar os valores resultantes da produtividade do trabalho, o meio da produção e da troca dos valores. O direito original de cada um estava, de fato, baseado numa atividade solitária e silenciosa: o trabalho para o consumo, e o mundo da economia aparecia cada vez menos como o florescimento da ação do indivíduo solitário que afirmava seu direito, para destacar-se cada vez mais como o sistema da produção e da troca de valores, "o sistema da economia política". A noção determinante deste sistema já não seria o direito absoluto do indivíduo, mas uma noção essencialmente relativa: o interesse ou a utilidade.
Para Locke, portanto, a terra existe para se tornar produtiva e lucrativa: a propriedade privada, criada pelo trabalho do homem, suplanta a posse comum. "É o trabalho, de fato, que instaura a diferença de valor em tudo quanto existe" (Segundo Tratado sobre o Governo, II, 40). O valor, na verdade, é dado não pelo trabalho do homem em si, mas pela produtividade da propriedade e sua aplicação ao lucro comercial. O uso do termo produtor (empreendedor) é próprio dos defensores do capitalismo (nas sociedades pré-capitalistas, as classes dominantes jamais se veriam como produtoras), pois indica que a propriedade passou a ser usada ativamente e não para consumo extensivo, mas para investimento (produtividade) com vistas à obtenção de lucros crescentes. Por isso mesmo, Locke foi um dos pensadores pioneiros na defesa explícita da aplicação das práticas voltadas à obtenção de maior produtividade e lucro (os chamados melhoramentos) na estrutura agrária da Inglaterra de seu tempo, apresentando um cabedal de argumentos filosóficos e científicos que justificassem a adoção dos cercamentos, fazendo inclusive referências às glebas dos camponeses e às terras comunais como desertos improdutivos. Nesta lógica, somente a produção voltada à comercialização de bens, com base na busca do lucro, seria capaz de garantir o aumento da riqueza da comunidade e do "quinhão comum" – argumento este usado na aprovação das leis dos cercamentos (século XVIII).
Locke desenvolveu ainda a justificativa da exploração colonial, apontando as colônias americanas como um laboratório dos melhoramentos (uso intensivo da terra com vistas ao lucro comercial), em contraposição ao "desperdício" dos índios. Ao mesmo tempo, desferiu ferina crítica aos velhos aristocracias, que agiam como especuladores da terra, ao deixá-la ociosa por encará-la apenas como símbolo de seu status e poder político, e aos comerciantes, ao quais acusou de serem meros intermediários. Os dois grupos eram vistos como parasitas da riqueza alheia, assim como o campesinato e as massas de despossuídos que utilizavam a terra para a obtenção de meios necessários à sua subsistência, trabalho este também considerado ocioso por Locke, pois incapaz de gerar bens a serem disponibilizados, através do mercado, a toda a sociedade. O empreendimento ideal seria aquele conduzido pelo grande proprietário, que introduziu benfeitorias em sua propriedade e passou a produzir para o mercado. 10
Logo, o projeto liberal estabeleceu as novas condições da ordem dos proprietários. Os não proprietários seriam marginalizados na nova ordem social, pois nada teriam a defender, já que, se não possuíam propriedade é porque não teriam sido capazes de trabalhar com métodos eficazes e produtivos, deixando de acumular riqueza. Locke tratava de frisar que o mundo foi dado aos homens "racionais e industriosos" e não àqueles que faziam objeção ao direito de propriedade, desdenhosamente descartados como "briguentos e trapaceiros". A cidadania, no Estado liberal burguês, é monopolizada pelos proprietários, daí a instituição do voto censitário nas constituições elaboradas em função das chamadas revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII (Revolução Gloriosa na Inglaterra, Revolução Americana – Independência dos EUA e Revolução Francesa).
Locke, Thomas Hobbes e o suíço de língua francesa JEAN-JACQUES ROUSSEAU (1712-1778) são considerados fundadores do jusnaturalismo ou teoria dos direitos naturais. No "modelo jusnaturalista", Estado e sociedade se confundem, representando o passo definitivo na conquista da civilidade e da cidadania. O homem passa a não existir mais fora do Estado, ao qual delega poderes no sentido da organização política da sociedade, através do pacto ou contrato social. Em contraposição a este estágio, que é o momento mesmo da civilização, o que existia antes era o estado de natureza, a barbárie, no qual o homem, animal despolitizado, vivia em bando, sem vinculação orgânica alguma entre seus pares. No estado não político reinava o império das paixões, a irracionalidade. Predomina, entre os principais teóricos jusnaturalistas, à frente Hobbes, a idéia de que o estado de natureza é um estado de guerra. Daí que o estado civil aparece como a salvação do homem. Para Rousseau, ao contrário de Hobbes, o homem é naturalmente bom, mas vive no isolamento, estagnado, sem progredir. O contrato social também surge como imprescindível para transformar o homem e torná-lo cidadão, agente ativo em sociedade. É através do pacto ou contrato social que se transfere para outrem a responsabilidade nas decisões da vida de todos, entrega-se a um outro poder, que passa a ser soberano, posicionando-se acima dos indivíduos, os destinos dos homens. É o consenso, a garantir a perpetuação do Estado, a dar legitimidade à ação das elites governantes. A grande questão que se estabelece, permanentemente conflituosa é: como conciliar liberdade individual, a grande bandeira dos teóricos burgueses, e obediência? A lei vem dar forma, na visão dos jusnaturalistas, a um equilíbrio precário, tênue, entre liberdade e poder, entre indivíduo e Estado. A lei é vista como a própria razão do Estado. Mas a lei tanto pode estar a serviço do Estado Leviatã de Hobbes, absolutista, não liberal, ou de um Estado representativo e constitucional, protetor das liberdades individuais, como quer Locke. O problema é que, se no primeiro exemplo o autoritarismo está no cerne da ação política por parte dos dominantes, no segundo caso as soluções autoritárias nunca estão descartadas, pois o Estado existe para conformar uma nova realidade, a da civilização, agindo constantemente contra os focos de "barbarismo" que ainda perdurem. Além disto, o estatuto da cidadania, naquele momento histórico, ficará restrito a quem é proprietário, excluindo de qualquer possibilidade de participação nas decisões, como o voto, a maior parte da população.
Para o entendimento da perspectiva liberal, o pensamento do filósofo alemão EMMANUEL KANT (1724-1804) é também elucidativo. O Estado, para ele, tem como objetivo maior a liberdade, que consiste na faculdade de se fazer tudo o que quer sem prejudicar os outros, e não a felicidade dos indivíduos. A liberdade, segundo leis universais, ou seja, aplicadas a todo tipo de sociedade, independentemente de tempo ou lugar, seria o princípio básico de funcionamento do Estado. O sistema republicano seria a melhor forma de governo, pois o poder seria exercido de maneira legal, em contraposição ao despotismo, baseado essencialmente no arbítrio. Neste quadro, o poder Legislativo é o mais importante, representando a vontade coletiva do povo. É preciso ressaltar que, no modelo jusnaturalista, dentro do qual também podemos incluir Kant, a vontade coletiva é o somatório de todas as vontades individuais, o todo é a soma dos indivíduos, pois trata-se de uma visão de mundo 11 fundamentalmente individualista.
O Estado, portanto, deve fazer coincidir seus fins com os múltiplos objetivos dos indivíduos, tornando-se um Estado-protetor, a vigiar seus súditos para impedir a eclosão dos conflitos. A igualdade, dentro deste ponto de vista, é formal, é a igualdade perante o Estado, perante a Lei. Não há possibilidade de se estabelecer a igualdade entre indivíduos naturalmente desiguais. Sendo assim, também a democratização plena seria impossível, já que o direito de cidadania não podia ser estendido a todos. Apesar de, para Kant, tal direito não ficar restrito apenas a quem detinha a propriedade, mas a quem já havia conquistado uma independência, pensada em termos econômicos, isto é, a quem dependia somente de seus próprios impulsos, não mais de comando alheio, aí ainda se verifica a exclusão da maioria da população, como os empregados, servidores, mulheres, etc.

O Liberalismo Econômico

ADAM SMITH (1723-1790), nascido na Escócia, cujas principais obras foram Teoria dos Sentimentos Morais (1759) e Riqueza das Nações (1776), é considerado o pai da Economia Política, ou seja, da Economia como matéria científica. Sofreu influência dos filósofos protestantes, com destaque para John Locke, do empirismo inglês e do jusnaturalismo. Na perspectiva desenvolvida por Adam Smith, os fenômenos econômicos são manifestações de uma ordem natural governada por leis objetivas através de um sistema coordenado de relações causais. Elevou, assim, a Economia à condição de Ciência, identificando-a com as ciências da natureza e rompendo com a metafísica. Essa ordem natural requereria, para sua operação eficiente, a maior liberdade individual possível. Em lugar do componente altruísta e ético das relações econômicas, Smith propunha a justificativa moral da defesa do interesse individual, cuja busca proporcionaria benefícios sociais. O interesse individual era visto por Smith como a motivação fundamental da divisão social do trabalho e da acumulação de capital, causas últimas do crescimento do bem-estar social coletivo. A aparente anarquia da busca individual do interesse egoísta levaria a um universo ordenado, a uma ordem provocada não pela ação política deliberada, mas, inconscientemente, pela ação de muitas pessoas. Mesmo que não houvesse benevolência recíproca entre os homens, o vínculo social não se romperia, pois continuaria a se manter por razões econômicas. No livro A Riqueza das Nações, Smith afirma:
Não é da benevolência do açougueiro, do merceeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas sim do cuidado que dispensam aos seus interesses. Não nos dirigimos à humanidade, mas ao egoísmo deles; e jamais lhe falamos das nossas necessidades, mas sempre das suas vantagens.
A ideologia econômica traduz, antes de tudo, o fato de que as relações entre os homens são compreendidas como relações entre valores mercantis. Daí que a doutrina da liberdade natural de Smith era dirigida contra as interferências da legislação e das práticas exclusivistas dos estados absolutistas e do mercantilismo. Os pensadores liberais, a começar pelos fisiocratas, passaram a entender que "cada nação é apenas uma província do grande reino da natureza" (Mercier de la Rivière). Numerosos autores se inscreveriam nessa perspectiva de substituição do político pelo econômico para fundar uma nova ordem nacional e internacional. A ideologia econômica permite compreender num mesmo movimento a paz civil (no interior da nação) e a paz entre as nações, problema contra o qual se batia a filosofia política clássica. Adam Smith completa esse movimento ao dissolver o conceito político de nação no conceito econômico de mercado.
É verdade, no entanto, que essa paz entre as nações, fundada sobre o comércio, não exclui uma "guerra da indústria", uma guerra de novo tipo: a concorrência. Ora, a concorrência 12
"concilia todos os interesses", seria, para os liberais, um instrumento de igualização tanto entre as classes sociais quanto entre as nações, organizando a justiça e a paz com mais perfeição ao ser exercida sem entraves. Os mecanismos de mercado, substituindo os procedimentos dos compromissos recíprocos do contrato político e social, permitiriam, com efeito, pensar a sociedade de forma natural, pois o mercado constituiria uma lei reguladora da ordem social, sem a necessidade de um legislador. A lei do valor regularia as relações de trocas entre as mercadorias, e as relações entre as pessoas também seriam entendidas como relações entre mercadorias, sem nenhuma intervenção exterior. Não é mais na política, mas sim na economia que se procuram os fundamentos da sociedade, com base na idéia de Mandeville: "o cimento da sociedade civil reside no fato de que cada um é obrigado a beber e a comer". Ao conceber o homem no estado de natureza como sendo já um homo oeconomicus, abole-se, num mesmo golpe, a distância entre estado de natureza e sociedade civil.
Nos meados do século XVIII, o entusiasmo pela agricultura entre os fisiocratas franceses tinha uma significação filosófica profunda: a terra simbolizava o enraizamento da vida social no subsolo das necessidades, enquanto a filosofia política não oferecia mais pontos de referência estáveis e seguros. O retorno à agricultura, à economia agrícola, apenas desviava e utilizava em seu benefício certos sentimentos bucólicos também muito em voga. Os fisiocratas, propondo racionalizar absolutamente a política, praticamente tentavam aboli-la, pois queriam progressivamente deixar de lado o emprego dos conceitos de política e de economia política, pensando na fusão da política com a economia e, verdadeiramente, na superação da primeira pela segunda, razão pela qual Dupont de Nemours cunhou o termo fisiocracia, que significa literalmente "governo da natureza das coisas". Os fisiocratas procuravam pensar o governo como uma máquina simples. Por isso execravam a democracia, que assemelhavam ao tumulto das multidões. "Todo bom governo consiste em haver o mínimo possível de assuntos públicos; e a democracia torna tudo assunto público" (Mirabeau). Ou: "Em matéria de governo, toda complicação é ameaçadora. Quanto mais molas tiver uma máquina, mais ela estará sujeita a fricções" (Condorcet). Assim, a função principal do Estado seria vigiar para que a política não despertasse, o que representava uma confissão do fato de que ela estava pronta a se desencadear a qualquer instante. O pensamento fisiocrático formava-se, assim, num gigantesco movimento de repressão da realidade. Ou seja, os fisiocratas sonhavam, da mesma forma que todos os liberais, com a extinção dos conflitos sociais. Vê-se a que ponto a utopia liberal, violentando a realidade, era suscetível de levar a um projeto de totalitarismo.
De forma diversa da dos fisiocratas, Adam Smith pensava a representação da sociedade mais em termos de uma autoregulação baseada em leis econômicas, do que em termos de uma ordem social garantida por um Estado repressor. A transparência do mercado opunha-se à transparência do contrato social. Adam Smith nos revela, então, a existência de uma sociedade de mercado, anterior à economia de mercado. O economista inglês foi o primeiro a compreender economicamente a sociedade civil, ao entendê-la como mercado, apesar de jamais ter empregado o termo sociedade civil em suas obras. Em compensação, falava sem cessar da nação, na intenção de passar de um termo jurídico-político para um termo propriamente econômico, tendo em vista que, para ele, a riqueza constituía a nação, compreendida como espaço do livre comércio circunscrito pela extensão da divisão do trabalho e movido pelo sistema socioeconômico das necessidades. A nação e a sociedade civil seriam, portanto, duas realidades idênticas para Smith. Com efeito, o vínculo econômico ligaria os homens como produtores de mercadorias para o mercado, considerado como o verdadeiro cimento da sociedade. A distinção chave não mais se colocava entre a sociedade civil e o estado de natureza, mas entre a sociedade e o governo, entre a nação e o Estado. 13
O conceito de mercado foi ampliado: em vez de ser simplesmente um lugar particular e localizado de trocas, era toda a sociedade a constituir o mercado, muito mais um mecanismo de organização social do que um mecanismo de regulação econômica. O mercado tornava-se um conceito político e sociológico e apenas como tal tinha uma dimensão econômica, já que as relações entre os homens passavam a ser concebidas como relações entre mercadorias, definida a nação como sistema das necessidades. Smith pensava a economia como fundamento da sociedade e o mercado como operador da vida social e, desta feita, era duplamente revolucionário, ao substituir a noção de contrato pela de mercado e ao compreender a sociedade economicamente e não mais politicamente. A influência de Locke é visível na ideia de que a igualdade de direito, igualdade natural, era enxergada como igualdade dos direitos de propriedade: o homem só é livre como proprietário. Daí o combate de Smith ao monopólio, identificado com a continuação do despotismo e dos privilégios, a fonte de todos os males da sociedade, representando, para a sociedade econômica, o mesmo que o despotismo para a sociedade política.
Escrevendo numa fase bem inicial da Revolução Industrial, Adam Smith percebeu a importância crucial da produção industrial, na qual a divisão do trabalho tornava possível um crescimento sem precedentes da produção e da produtividade. A teoria econômica apresentada em A Riqueza das Nações é essencialmente uma teoria do crescimento econômico, pela qual a riqueza ou o bem estar das nações é identificado com seu produto anual per capita, determinado pela produtividade do trabalho "útil" ou "produtivo" (aquele que produz um excedente de valor sobre seu custo de reprodução) e pela relação entre o número de trabalhadores empregados produtivamente e a população total. A dinâmica de seu modelo de crescimento pode ser melhor entendida em termos de um processo de "causalidade circular cumulativa": o crescimento da produtividade do trabalho, que tem origem em mudanças na divisão e especialização do processo de trabalho, ao proporcionar o aumento do excedente sobre os salários, permite o crescimento do estoque de capital, variável determinante do volume de emprego produtivo; a pressão da demanda por mão de obra sobre o mercado de trabalho, causada pelo processo de acumulação de capital, provoca um crescimento concomitante dos salários, assim como da população, em consequência da melhora das condições de vida dos trabalhadores; o aumento paralelo do emprego, salários e população amplia o tamanho dos mercados, que, para um dado estoque de capital, é o determinante básico da extensão da divisão do trabalho, iniciando-se assim a espiral de crescimento.
No quadro da sociedade de mercado, a divisão do trabalho traduzia, para Smith, a interdependência crescente entre os homens, tornando-se, assim, um verdadeiro transformador sociológico: por meio dela a troca produzia a socialização ("sem a ajuda e o concurso de milhares de pessoas, o menor particular, num país civilizado, não poderia ser vestido e provido"). Para além de uma economia de tempo e trabalho, o processo de divisão do trabalho representaria a própria construção da sociedade até a sua finalidade última: a autonomia realizada pela dependência generalizada. O mercado tornava-se, assim, o avesso e o simétrico silencioso do contrato social. Na sociologia proposta por Smith, a sociedade devia ser pensada como algo móvel, em que as classes sociais, separadas no momento da produção, unem-se e são profundamente interdependentes no momento do consumo, visto por ele como o único objetivo, o único termo de toda a produção. Ao passo que os produtores representariam interesses particulares, os consumidores encarnariam o interesse geral: em virtude de a riqueza ser o motor da sociedade e o consumo, o objetivo da riqueza, a sociedade econômica (o mercado) seria o lugar da realização do interesse geral. O consumidor é o cidadão da sociedade de mercado: os direitos superiores dos consumidores são para Smith o que a vontade geral é para Rousseau. 14
Por fim, como Adam Smith pensava o papel do Estado na sociedade de mercado? O Estado liberal não é inativo, devendo, ao contrário, ser extremamente ativo para construir o mercado. O soberano teria três deveres centrais a cumprir:
1) Defender a sociedade de todo ato de violência ou de invasão por parte de outras sociedades independentes.
2) Proteger, tanto quanto possível, cada membro da sociedade contra a injustiça e a opressão de qualquer outro membro da sociedade, por meio de uma administração exata da justiça.
3) Erigir e manter certas obras públicas e certas instituições de que o interesse privado não se ocuparia jamais, na medida em que não permitem um lucro suficiente.
Smith reconhecia, cruelmente, que "o governo civil, tendo por objeto a segurança das propriedades, é, na realidade, instituído para defender os ricos contra os pobres", situação que dizia deplorar, mas não encontrava meios para superá-la, teoricamente. Em compensação, o principal da atividade governamental estaria no terceiro ponto: construção de obras (grandes estradas, pontes, portos, etc.) que facilitassem o comércio, além da educação dos jovens e da massa do povo, para lutar "contra o veneno do entusiasmo e da superstição". O governo, assim, estabeleceria uma sociedade culturalmente homogênea e um espaço econômico estruturado, duas condições necessárias para instaurar uma sociedade de mercado, ou seja, uma sociedade capitalista. O Estado liberal, portanto, na contramão do Estado parasitário da velha aristocracia feudal, deveria, antes de tudo, construir e preservar o mercado, processo em que a sociedade civil a ser erigida se confunde com a sociedade de mercado.


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
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MANENT, Pierre – História Intelectual do Liberalismo – 10 lições, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1990.
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_____________ – Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico, São Paulo, Boitempo Editorial, 2003.







A revolução democrática

ininterrupta ao socialismo

A revolução é um processo objetivo, construído pela prática diária e não um acontecimento espontâneo. Construí-la significa solucionar os problemas concretos que a luta de classes apresenta, a enxergar a revolução dentro das atuais condições do mundo e da correlação de forças existente. Nos preparar para um processo que será inevitavelmente longo e cheio de peripécias, porque devido as dimensões e importância econômica e política do Brasil, é certo que o imperialismo ianque intervirá diretamente para tentar deter nosso processo de libertação. É preciso também, pensar na revolução como um processo vivo, que ocorre na prática e não em nossas cabeças, nos livros, ou nos modelos propostos. Lênin, citando Goethe, dizia que "a teoria é cinza, verde é a árvore da vida". É necessário encontrar qual o caminho do socialismo em nosso país, e basta ter "olhos de ver" e um espírito científico para concluir que a revolução no Brasil é impossível sem a participação desta força poderosa que são os camponeses pobres. Um erro histórico da vanguarda revolucionária foi o de não ter compreendido o verdadeiro papel e peso dos camponeses em nosso processo revolucionário. Num país de dimensões continentais, com um capitalismo burocrático atrasado, dominado pelo imperialismo e com uma das maiores concentrações de terra do mundo, o problema agrário e camponês não são um mero detalhe.
O que a experiência histórica tem comprovado, e os últimos anos o confirma, é que está justamente no campo a contradição mais aguda de nossa sociedade. Os números são incontestáveis: nos últimos 20 anos 1500 camponeses foram assassinados em confrontos pela posse da terra, só no ano passado 73 camponeses foram assassinados, centenas de lideranças foram presas e muitas continuam detidas até hoje, centenas de milhares de massas têm se mobilizado para tomar as terras do latifúndio, cresce constantemente os enfrentamentos armados entre camponeses e as forças dos latifundiários, a luta pela terra se faz cada vez mais massiva e radicalizada, existem mais de 190 mil famílias acampadas e mais de 4 milhões a espera de um pedaço de terra. O que vivemos no Brasil é uma verdadeira guerra pela terra, são 40 milhões de camponeses pobres e camponeses sem-terra contra uma oligarquia latifundiária de pouco mais de 20 mil proprietários, que detêm mais de 50% das terras agricultáveis. E esta guerra tem nome: se chama Revolução Agrária, uma revolução que já se acha em curso e só não está mais desenvolvida porque tem predominado a direção reformista no movimento camponês. Cabe aos verdadeiros revolucionários compreender as contradições que impulsionam estes milhões de camponeses para a luta, mesmo nos encontrando num momento de descenso do movimento de massas em geral e de auge da ofensiva contra-revolucionária do imperialismo. Estudar este processo para interferir nele e desenvolvê-lo, cumprindo a urgente tarefa de impulsionar a Revolução Agrária em nossa pátria.


1) Breve histórico da formação

econômica e social do Brasil


Desde as primeiras lutas travadas no território, onde se encontra hoje o Brasil, o problema da terra se fazia presente. A invasão portuguesa iniciada em 1500, com a chegada das caravelas de Pedro Álvares Cabral, transportou para a nossa terra o sistema feudal reinante em Portugal. A feudalidade se expressava nas Capitanias Hereditárias, longas extensões territoriais onde vigoravam o modelo de suserania e vassalagem europeus. Assim nossa terra foi logo dividida em 15 grandes "feudos". Os índios foram inicialmente utilizados como força de trabalho na extração das riquezas naturais, particularmente o pau-brasil, com isto a relação dos invasores com os nativos se atritou cada vez mais. Grande conhecedor do território eles não se deixaram escravizar e se refugiaram nas selvas e nos sertões de nossa terra. Com a expansão do domínio português os embates se tornaram mais agudos e sangrentos. Os índios perceberam, diante da sanha dos invasores, que somente com uma luta aberta pelo território, por sua terra, poderiam sobreviver. O ataque dos nativos foi forte e valente. Mas, devido ao atraso do desenvolvimento de suas forças produtivas, e conseqüentemente de suas armas, e também, à alta dispersão da população local, foi impossível aos índios deter o invasor. A resistência mais organizada, e portanto a mais importante, foi a Confederação dos Tamoios, liderada por Aimberé que conseguiu a façanha de unificar a maioria das nações indígenas contra os invasores portugueses.
Com a impossibilidade de contar com a força de trabalho do índio, que resistia à invasão e se refugiava nos sertões, os portugueses escravizaram os africanos e os trouxeram para cá. Com a força de trabalho do negro, foi possível ao reino de Portugal colonizar o nosso território. O Brasil deixava de ser um fornecedor de especiarias, para fornecer produtos agrícolas à metrópole. Esta produção agrícola se assentava no trabalho escravo, em grandes extensões rurais e na monocultura. Como nossa produção estava voltada para atender as necessidades das metrópoles a economia local oscilava curtos períodos de prosperidade com longos períodos de crise. Tivemos os ciclos da cana-de-açúcar, e a sua decadência; do ouro, e a sua decadência; da borracha, e a sua decadência; do cacau, e sua decadência; do café, e a sua decadência; etc. O que foi constante em todos estes ciclos foi: 1) o caráter colonial de sua produção, nosso país pertencia ao reino de Portugal; e 2) a brutal exploração do trabalho escravo do negro.
Diferentemente dos índios, os negros africanos não conheciam o território, isto facilitou no início a sua escravização pelos portugueses. Mas na medida que foi se adaptando, que gerações de negros nasciam já no Brasil a sua luta ganhou grande vigor. A forma clássica de resistência dos negros foi semelhante a dos índios, eles também se refugiavam no interior e nas serras, e lá construíam fortificações onde desenvolviam sua cultura e asseguravam sua liberdade. Eram os Quilombos. O Quilombo mais famoso foi o Quilombo dos Palmares, construído no início do século XVI e teve como principais lideranças Ganga Zumba e Zumbi. Este Quilombo resistiu mais de cem anos e situava-se onde hoje se encontra o município de União dos Palmares, no estado de Alagoas. A vida dos quilombolas, como eram conhecidos, não era de isolamento, além de resistirem aos ataques dos capitães do mato enviados pelos senhores de terra, os negros faziam incursões nas fazendas para libertar outros companheiros e justiçar escravocratas.
Por debaixo da exploração escravista da força de trabalho do negro, crescia uma massa de camponeses explorados violentamente pelo latifúndio feudal. Era o trabalho deles que sustentava a economia interna com a carne de gado e com os víveres necessários para colocar a monocultura e a mineração em funcionamento. Esta exploração servil, de um enorme contingente de massas privadas do direito da terra, não é contada pela história oficial. Mas eram milhões os vaqueiros e os pequenos produtores, que para produzir eram obrigados a trabalhar nas terras dos latifundiários e deixar para estes, que nada faziam, mais da metade de sua produção. Esta opressão feudal é relatada brilhantemente por Euclides da Cunha, em "Os Sertões". Ele relata o comportamento de um vaqueiro quando encontrava uma vaca perdida no mato, primeiro tentava encontrar o dono; não obtendo sucesso cuidava do animal assim como dos seus, mas não o utilizava para nenhum trabalho de tração nem o levava para ser vendido na feira; quando a vaca dava a primeira cria o camponês repetia com esta o mesmo tratamento, assim como com a segunda cria; somente a terceira cria o camponês se apossava, pois era a terça. O que Euclides da Cunha qualifica de honestidade e dignidade do camponês, representa mais ao fundo as relações feudais existentes, que eram reproduzidas espontaneamente pelo vaqueiro com um senhorio invisível.
A luta deste povo era a luta pela posse da terra e a conseqüente destruição destas relações servis. Foi contra esta massa de camponeses e também contra os índios e negros, que a monarquia, em 1850, decretou a primeira Lei de Terras do Brasil, nela ficou estabelecido que a terra no país só poderia ser adquirida mediante a compra. Mas como poderiam comprar um pedaço de terra aquela massa de camponeses famélicos, de negros que só possuíam a roupa do corpo, ou de índios embrenhados na mata? Estava claro o objetivo desta lei: assegurar o monopólio da terra nas mãos classes dominantes. Notemos que esta lei foi decretada 33 anos antes da abolição da escravidão em todo o Brasil. Assim, negado por lei o direito a terra, para os ex-escravos a "libertação" representou: a exploração assalariada na cidade, ou a opressão semifeudal no campo.


Capitalismo burocrático

O capitalismo no Brasil foi implementado de maneira totalmente distinta, tanto econômica como politicamente, dos países da Europa e da América do Norte. Nestes países a burguesia ascendeu ao poder realizando a revolução burguesa, derrotando o feudalismo, decapitando reis, promovendo guerras cruentas por sua unificação e libertação nacional. Economicamente estas burguesias, contaram com um longo período de acumulação primitiva para a formação de seus capitais, foram as épocas das grandes navegações, do mercantilismo e da exploração colonial. No Brasil, os processos revolucionários de libertação nacional e pela constituição de uma república burguesa foram todos derrotados, restando meros rearranjos e reestruturações das classes dominantes, como foi em nossa "independência", declarada por Dom Pedro I, o filho do rei de Portugal. O capitalismo surgirá no Brasil, então, não como resultado da luta política da burguesia local em formação, mas como necessidade do imperialismo
A economia capitalista surgirá com mais força no final do século XIX e início do XX com uma tímida industrialização na região sudeste. Quem financiou esta industrialização? qual foi a acumulação primitiva para tal? Foi a Inglaterra, a mesma que no início do século XIX proibia a formação de uma indústria nacional. Esta virada em sua política se deve às profundas modificações econômicas ocorridas nos países capitalistas entre os anos de 1899 e 1903. Trata-se do estabelecimento de uma nova fase do capitalismo, isto é, o imperialismo. O imperialismo é o capitalismo em sua fase monopolista e parasitária, onde o centro da economia das potências imperialistas deixa de ser unicamente a exportação de mercadorias para ser a exportação de capitais para os países semi coloniais. O capital estrangeiro inglês, este foi o capital primitivo do desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Por isto o capitalismo em nosso país é um capitalismo burocrático, pois nasce dependente e atado às potências imperialistas. O capitalismo burocrático não destrói as relações feudais no campo, como ocorreu em todos os processos revolucionários dirigidos pela burguesia até o século XIX, pelo contrário, se assenta no latifúndio para consolidar-se.


2) História da luta pela

terra e do movimento

camponês no Brasil

Será portanto, da fusão da massa de negros, índios e camponeses, dentro destes os imigrantes europeus, que se formará o povo brasileiro. Nestes contingentes se formarão a classe operária e o campesinato moderno no Brasil. De fins do século XIX até hoje, a luta principal no campo passa a ser claramente a luta pela terra. A Guerra de Canudos representou de maneira épica esta contenda. O povoado de Belo Monte, cidade fundada por Antônio Conselheiro em 1893, chegou a ter mais de 30 mil pessoas. Para destruí-la o exército organizou 4 grandes expedições, sendo que a quarta contou com duas enormes colunas. Os camponeses dirigidos por Pajeú e João Abade combateram heroicamente aquela terrível máquina de guerra. Mataram com um tiro na barriga o famigerado coronel Moreira César, que ficou conhecido como "corta cabeças" na guerra do Paraguai. O que impulsionou aquela massa a lutar com tamanho vigor? A religião de Conselheiro podia ser a expressão ideológica, mas a base econômica que movia aquele povo era a vontade de ter um pedaço de terra para morar, livre da exploração semifeudal do latifúndio. Belo Monte foi atacada com tanta sanha pelo Estado genocida, porque o número de massas atraído pela proposta de Conselheiro foi tão grande que colocava em risco a estrutura arcaica do campo no Brasil.
Todas as lutas que se seguiram no campo tiveram, em última instância, este mesmo conteúdo. Assim foi em Caldeirão no Ceará, do Beato Lourenço, que chegou a ser bombardeada por aviões a mando do governo de Getúlio. O mesmo aconteceu em Pau-de-Colher, no município de Casa Nova na Bahia; em Contestado em Santa Catarina, luta dirigida pelo monge João Maria; e em todas as outras rebeliões camponesas. Assim, a luta pela terra foi se desenvolvendo e tomando proporções cada vez maiores. Quando os camponeses se juntaram à classe operária sua luta ficou ainda mais forte e se tornou, então, definitivamente revolucionária. A primeira grande luta camponesa dirigida pelo Partido Comunista do Brasil aconteceu nas cidades de Trombas e Formoso (norte de Goiás) e foi liderada pelo histórico dirigente comunista José Porfírio. A guerrilha de Porfírio, como ficou conhecida, ocorreu nos anos 50 e teve grande adesão dos camponeses, que chegaram mesmo a organizar embriões de um governo popular. Mas devido ao oportunismo da direção do Partido, que passou a vigorar a partir de 55 resultando numa política de alianças com Juscelino, a luta foi interrompida. Mesmo assim a massa ficou organizada e só foi desarmada em 1964, depois do golpe dos militares. Em 1957, o Partido Comunista dirige a luta dos camponeses de Porecatu, no estado do Paraná.
A experiência mais massiva e combativa da luta camponesa em nossa História aconteceu nos anos 60, no Nordeste, com as Ligas Camponesas. As Ligas começaram a ser organizadas na Zona da Mata pernambucana, inicialmente no município de Vitória de Santo Antão, onde os camponeses travaram uma luta pela posse do engenho da Galiléia. A luta teve grande repercussão nacional e contou com o apoio do advogado e deputado Franciso Julião. Com a vitória o movimento toma grande força e diversas Ligas são fundadas por todo o nordeste, principalmente em Pernambuco e na Paraíba. Teve grande papel na organização das Ligas o líder camponês Pedro Teixeira, que foi assassinado em 1961 pelo latifúndio. Mesmo não tendo uma direção comunista, as Ligas adotaram um programa revolucionário, que propunha a luta armada para a realização de uma reforma agrária radical. No primeiro Congresso Nacional Camponês, realizado em Belo Horizonte, organizado pelos reformistas do PCB e pelas organizações da igreja católica, a posição revolucionária das Ligas saiu vitoriosa, demonstrando haver uma grande identidade de toda a massa camponesa do Brasil com o programa revolucionário. Com o golpe militar as Ligas Camponesas foram desorganizadas.
Outra luta camponesa dirigida pelo Partido Comunista foi a histórica Guerrilha do Araguaia, organizada no início dos anos 70 na região do Sul do Pará. Esta guerrilha era parte da estratégia de iniciar uma guerra popular no Brasil para derrotar a ditadura militar e o imperialismo. Nela participaram dezenas de militantes comunistas, a maioria deles jovens vindos do movimento estudantil. O exército reacionário descobriu a movimentação guerrilheira e montou um operativo que pegou os combatentes de surpresa, pois ainda estavam no período inicial de preparação. Mesmo assim a luta foi muito dura, os milicos organizaram três campanhas, mobilizando mais de 20 mil efetivos para enfrentar 69 guerrilheiros e mais alguns camponeses que já haviam aderido à luta. A guerrilha resistiu até 1974, quando os últimos combatentes foram presos e assassinados pelo exército. Em que pese seu heroísmo, houveram erros de caráter estratégicos na definição e direção da Guerrilha. O próprio local escolhido para desencadeá-la não foi acertado, pois o sul do Pará era, então, bastante despovoado e com uma massa de camponeses com pouca experiência de luta, o contrário do nordeste brasileiro.
Durante o regime militar aumentou muito a concentração da terra no Brasil. A expansão da fronteira agrícola promovida nos anos 70 pelo governo, com a colonização da Amazônia, não democratizou o acesso à terra. Centenas de milhares de camponeses, de todas as regiões do país, se deslocaram principalmente para os estados de Rondônia, Pará e Mato Grosso em busca de uma vida melhor. Contraíram malárias, enfrentaram bichos, domaram o mato, para depois perderem seus pequenos torrões para o latifúndio. Camponeses e índios que viviam há anos em seus sítios e aldeias foram expulsos por latifundiários ligados aos militares, que apresentavam títulos falsos de propriedade contando com a total conivência das "autoridades". Isto resultará em diversos confrontos de posseiros com o latifúndio, nos anos 60, 70 e início dos anos 80, como foi em Cachoeirinha (MG), Marabá e São Geraldo do Araguaia (PA) e em muitas outras regiões.
Chegamos no final dos anos 80 com uma maior penetração do capitalismo no campo e com as contradições ainda mais agravadas. Com a derrota da resistência armada e com a desorganização do movimento comunista, o movimento camponês ficará sem direção proletária durante toda a década de 80 e início dos anos 90. Assim, a direção que predominou no movimento camponês neste período, foi a direção pequeno-burguesa vinculada à igreja católica: CPT e MST. Isto limitou bastante a luta camponesa, pois sua direção oportunista tentava a todo custo conduzi-la ao pacifismo e eleitoralismo. Mesmo assim, o movimento camponês, empurrado pela miséria opressora, manteve uma grande massividade e radicalidade. As lutas de maior envergadura do movimento camponês na última década foram as de Corumbiara-RO (1995) e Eldorado dos Carajás-PA (1996). A Batalha de Santa Elina, como ficou conhecida a luta de Corumbiara, foi um enfrentamento armado de 600 famílias camponesas contra a pistolagem e o aparato repressivo do Estado podre, e apesar da selvageria do latifúndio houveram mais mortes do lado dos latifundiários do que dos camponeses. Esta batalha marcará o início de uma virada no movimento camponês, porque estabeleceu na prática a linha revolucionária de luta pela terra.


O oportunismo e o revisionismo*
no movimento camponês

Devido ao predomínio das concepções revisionistas e oportunistas de direita na direção do Partido Comunista do Brasil, ao longo de sua história, a participação dos comunistas nas lutas camponesas foi muito pequena. O desprezo pelo campesinato e a incompreensão do seu importante papel na revolução brasileira representaram erros que prejudicaram, em muito, o processo revolucionário em nosso país. Este distanciamento permitiu o ascenso das direções pequeno-burguesas. Levou os comunistas a intervirem muito pouco em lutas massivas e combativas como as Ligas Camponesas no Nordeste. Quem viu com maior precisão o papel dos camponeses na revolução brasileira foi o grande comunista alagoano Manoel Lisboa, fundador do Partido Comunista Revolucionário. Manoel em sua "Carta de 12 pontos" definiu com grande precisão o caráter da revolução brasileira, como uma revolução democrática, e o caminho desta como sendo o da guerra popular prolongada através do cerco da cidade pelo campo.
Nestes últimos 20 anos, assim como no movimento de massas em geral, tem predominado uma direção oportunista eleitoreira no movimento camponês. A direção do MST, apesar de expressar um radicalismo de boca, sempre teve um comportamento de deter a radicalização da luta camponesa e conduzi-la para a estratégia eleitoral. No período da gerência de FHC, mantinha uma linha de "morde e sopra", oscilando uma prática aparentemente combativa que na verdade servia de barganha para audiências com presidente e ministros. A linha de ação da direção do MST é a de fazer a reforma agrária dentro da legalidade, não organizam a resistência e alimentam na massa a ilusão de que o Incra irá resolver a questão. Esta prática resulta nos inúmeros acampamentos na beira de estrada, onde as massas ficam durante anos esperando a decisão dos órgãos do governo. Até o discurso radical está sendo abandonado, quando lançam mão deste falatório é na preocupação de não perderem a massa de camponeses de suas bases, que almejam cada vez mais uma direção revolucionária. Com sua posição governista, a direção do MST tem perdido cada vez mais influência na direção do movimento camponês, o que tem ficado patente com o surgimento de um enorme número de organizações camponesas, muitas delas rachas na base desta organização. A tendência é que este processo de rachas continue por um tempo ainda, até o triunfo da posição revolucionária no movimento camponês.


3) A concentração de terras

e o sistema latifundiário


O Brasil tem uma das maiores concentrações de terra do mundo. Os cerca de 25 mil latifundiários existentes (donos de 55 mil propriedades), detêm quase 50% das terras agricultáveis (quase 200 milhões de hectares), o que significa quase 25% de todo o território nacional nas garras do latifúndio. Os pequenos camponeses, uma massa de 5,2 milhões de trabalhadores, possuem apenas 21% das terras agricultáveis. A industrialização do país e o avanço do capitalismo no campo, não resolveram o problema da concentração da terra, pelo contrário, esta tem aumentado ao longo das últimas décadas. Tanto que somente nos últimos dez anos, enquanto foram assentadas cerca de 400 mil famílias, desapareceram 1 milhão de pequenas propriedades, aumentando a concentração de terras e reforçando o sistema latifundiário.
É uma grande ilusão achar que as relações predominantes no campo brasileiro são capitalistas. O nosso interior não é aquele que aparece na rede globo, da soja para exportação e da festa country. O interior do Brasil é o da exploração semifeudal, da opressão horrenda do sistema latifundiário sobre uma massa enorme de camponeses pobres. E esta exploração tem um enorme peso econômico, praticamente todo o mercado interno é abastecido pelos camponeses pobres e médios. São das propriedades com até 100 hectares que saem o arroz, o feijão, a cebola, o tomate, o milho e a macaxeira consumidos na cidade. E alguém já ouviu falar no emprego da alta tecnologia para a produção de milho ou arroz em nosso país? Evidentemente que não, porque os pequenos e médios produtores continuam arrancando na enxada a riqueza da terra. A mecanização e a tecnologia no campo existem somente para a agricultura de exportação, para a soja e laranja para suco, além de uma pouca numerosa média burguesia agrária.
Se na produção da soja e outros agrobusines vigora as relações capitalistas de produção (assalariamento), na produção dos alimentos para o mercado interno predominam as relações semifeudais de meia, terça e a economia camponesa da "agricultura familiar", onde o patriarca reproduz com seus filhos as mesmas relações que trava com o latifúndio. Inclusive, a penetração do capitalismo no campo tem reduzido o número de assalariados, não somente pela utilização da alta tecnologia, mas pela adoção, nas agroindústrias, de relações pré-capitalistas. O camponês que não possui terra e quer trabalhar, não pode simplesmente plantar na terra parada em frente a sua casa, porque aquele terreno possui um dono. Para plantar ali, o camponês terá que entregar metade, ou um terço, da sua produção ao proprietário sem que este tenha contribuído em nada com o plantio. Esta relação muito se assemelha à servidão do feudalismo, diferenciando apenas no fato de que os laços que ligam o camponês ao latifundiário não são tão fortes como antes. As relações de meia e de terça não são relações capitalistas, são relações semifeudais. Os camponeses pobres com pouca terra e os camponeses médios também travam este tipo de relação com o latifundiário, para aumentar sua produção são obrigados a arrendar as terras paradas do latifúndio e para isto não pagam um aluguel fixo, mas uma renda que corresponde a metade ou a um terço do produzido, o que difere da renda capitalista da terra.
Os camponeses pobres, os camponeses sem terra e os camponeses médios são oprimidos de mil formas pelo sistema latifundiário semifeudal. Este sistema consiste não somente no monopólio da terra, mas também no monopólio do crédito, do comércio e da tecnologia. O camponês não consegue escoar livremente sua produção para os mercados consumidores, primeiro porque geralmente não possuem meios, ou seja, transporte e armazéns, para isto. E em segundo lugar os Centros de Abastecimento das cidades são verdadeiras máfias controladas por grandes capitalistas, que definem o preço de cada produto. Este monopólio do comércio impõe preços baixíssimos aos produtos dos camponeses, os chamados atravessadores chegam a pagar apenas 2 reais pela caixa de 20 kg de banana prata no Norte de Minas e 6 reais pela saca de 20 kg de cebola no Nordeste.
O monopólio do crédito compõe uma parte fundamental do sistema semifeudal. Quase não existem recursos para a pequena produção e quando são liberados o juro pago pelos camponeses é geralmente muito alto. Além disto, a partir do crédito é feita uma padronização da produção, já que o dinheiro só é liberado pelo banco mediante a apresentação de projetos. Isto resulta na criação de pólos de culturas agrícolas, em Rondônia arroz, no interior do nordeste milho, no centro da Bahia feijão, em torno da cidade de São Paulo hortaliças, etc. Este controle do que é produzido pelos camponeses, feito desde os bancos, é fundamental para a redução dos preços, já que acaba havendo um excesso localizado de oferta de determinado produto. Além disto, ao ceder o crédito o banco obriga o camponês a comprar os insumos, ferramentas, etc, em fornecedores específicos, fechando, assim, o controle monopolista sob a sua produção.
Como não possuem capital e seu crédito é pequeno, a mecanização da pequena e da média produção é muito reduzida. Além de resultar numa produtividade menor, a falta da tecnologia impõem sérios prejuízos aos camponeses. Em Rondônia, por exemplo, para polir o seu arroz o camponês tem que dar a metade para o dono da máquina, no interior do Ceará para moerem a sua cana-de-açúcar os camponeses entregam metade da rapadura produzida ao dono do engenho. Todo este sistema de monopólios cerca os camponeses pobres e médios por todos os lados e não permite que sua economia desenvolva, já que o resultado obtido com a venda da produção corresponde praticamente ao valor investido. Desta maneira as relações semifeudais têm se reproduzido ao longo dos anos e é uma inverdade dizer que a agroindústria está destruindo estas relações, ao contrário ela se nutre delas para se desenvolver. O agronegócio, assim como o platantion, só é viável com uma economia camponesa paralela.
A grande burguesia brasileira se desenvolveu tendo como base o latifúndio, ampliou as relações capitalistas mantendo subjacentes relações semifeudais. E isto, porque o sistema latifundiário é extremamente lucrativo para os capitalistas. Mesmo sendo o trabalho camponês muito menos produtivo do que a agricultura mecanizada, graças a opressão do sistema de monopólios, ele tem um custo menor. Sendo a pequena e a média produção responsável pelo abastecimento interno de alimentos o sistema latifundiário permite um barateamento do preço destes produtos. Esta relação favorece à grande burguesia, na medida que permite a redução do valor dos salários nas cidades, já que o salário corresponde à reposição da força de trabalho, que é fundamentalmente o custo com alimentação. Não por acaso, o salário mínimo no Brasil é um dos mais baixos da América Latina, pois a comida aqui, devido a alta concentração da terra e o sistema latifundiário, é comparativamente mais barata do que nos países vizinhos.
A análise detida sobre a realidade do campo em nosso país demonstra que a estrutura agrária brasileira se manteve praticamente intacta nestes 500 anos, e, particularmente no último século. Apesar das mudanças significativas da economia e da maior concentração populacional nos centros urbanos, as relações econômicas que predominam no campo são praticamente as mesmas do final do século XIX. A população rural no Brasil gira em torno da casa dos 40 milhões, e sua maioria é composta por pequenos e médios produtores e camponeses pobres sem nenhuma ou com pouca terra. Este povo, como vimos anteriormente, tem lutado bravamente pelo direito à terra. Esta guerra que se agudizará ainda mais, pois a população camponesa tem uma alta taxa de crescimento, é outra prova da semifeudalidade em nosso campo. É a comprovação patente de que o problema agrário nunca foi resolvido. Se houvesse o predomínio do capitalismo no campo a luta no interior de nosso país seria a luta por melhores salários e melhores condições de trabalho. Mas isto não existe. O que existe são cinco milhões de famílias lutando para ter um pedaço de terra e cabe aos revolucionários mostrar que fora do caminho revolucionário não há revolução para o campo e a nação.


4) Reforma agrária ou

revolução agrária?


Ao estudarmos a história da luta pela terra em nosso país, vimos que ela veio se radicalizando ao longo dos anos, e que os conflitos no campo cresceram, e não diminuíram. Esta realidade expressa, que durante todos estes anos o Estado reinante foi incapaz de sequer amenizar o problema agrário, muito menos, solucioná-lo. O latifúndio foi a principal classe dominante até o século XIX, depois passou a ser o principal aliado da grande burguesia lacaia do imperialismo. Não houve sequer um momento em nossa história que o latifúndio tenha ficado de fora do poder estatal. Mesmo no golpe dado por Getúlio em 30, que contrariou os interesses dos barões do café e dos coronéis do nordeste, o latifúndio não saiu do poder. Logo depois de consolidar seu governo, Getúlio reconciliou com os barões do café e com os coronéis, para os primeiros comprou toda a safra de café e jogou no mar para garantir o preço, e para os outros seguiu com a política sistemática de repressão da massa em luta. No regime militar o poder do latifúndio aumentou, figuras como José Sarney, ACM e Marco Maciel tiveram grande papel na sustentação do regime. Na "redemocratização" Sarney foi presidente da república, eleito como vice de Tancredo no colégio eleitoral; seu sucessor foi Collor de Melo, membro de uma das mais arcaicas e corruptas oligarquias de usineiros do estado de Alagoas. O mandato de FHC foi, quase todo, sustentado pela aliança com ACM. Ainda hoje, a chamada bancada ruralista tem um terço das cadeiras da Câmara de Deputados, e outras tantas no Senado. O Ministro da Agricultura do governo Lula, Roberto Rodrigues, é um grande proprietário de terras em São Paulo e portanto, representante do latifúndio. Todos estes fatos comprovam que o latifúndio participa ativamente do poder estatal e que é a principal base de sustentação política do poder da grande burguesia e, conseqüentemente, do domínio imperialista sobre nosso país. Seguramente não interessa em nada, a um Estado sustentado pelo latifúndio, fazer qualquer tipo de democratização do acesso a terra.
A "nova" lei de terras da Constituição de 1988, prevê que somente as terras improdutivas são destinadas para a reforma agrária, e ainda, estas terras são compradas do latifúndio e devem ser pagas pelos camponeses. O que este processo de reforma agrária tem representado é uma capitalização do latifúndio, que se fortalece com as altíssimas indenizações recebidas do governo. Os defensores da reforma agrária não propõem a destruição do latifúndio argumentam que o país é tão grande que pode comportar diferentes "modelos" de propriedade de terra. O que estão defendendo é a possibilidade da coexistência pacífica do latifúndio com a pequena produção dos camponeses pequenos e médios. João Pedro Stédile, dirigente do MST, declarou recentemente que "a maioria dos latifundiários são gente de bem". A garantia de que o camponês fique com sua terra é a destruição do latifúndio, destruição de todo o seu sistema de monopólios. A venda de terras improdutivas aos camponeses, sem a destruição do sistema latifundiário, é apenas uma enrolação.
A revolução agrária é a destruição do sistema latifundiário e a libertação de grandes forças produtivas em nosso país. Este é o único caminho capaz de levar os camponeses à libertação da opressão semifeudal. Mas a destruição do latifúndio é também a destruição do poder da grande burguesia e da dominação imperialista, porque como vimos o latifúndio é a base sobre a qual se assenta, política e economicamente, o poder do velho Estado. A luta pela terra é, portanto, a luta contra estes Estado e não será com uma reforma e sim com revolução que iremos derrubá-lo.


5) O Programa Agrário e de

Defesa dos Direitos do Povo


A revolução brasileira é uma revolução democrática de novo tipo, ininterrupta ao socialismo. Sua tarefa consiste na destruição das três grandes montanhas que pesam sobre nosso povo e sobre nossa nação: o imperialismo, o sistema latifundiário e o capitalismo burocrático. A contradição mais aguda em nosso país e, portanto, a principal hoje é a que opõem sistema latifundiário versus camponeses pobres, e só pode ser resolvida mediante uma revolução agrária, a primeira fase da revolução democrática. O Programa Agrário e de Defesa dos Direitos do Povo, é o programa da revolução agrária. Seu resultado é a destruição do latifúndio, de seu sistema de opressão semifeudal e o atendimento das reivindicações mais sentidas das massas da cidade. Este programa só pode ser concretizado mediante a prática de um movimento popular revolucionário. Existe juntamente com o Programa Agrário um Programa de Defesa dos Direitos do Povo, para soldar a estratégica aliança operária e camponesa, base da Frente Única das classes interessadas na revolução democrática, e que abarca a maioria da população. Só a luta do povo pode alcançá-lo, isto quer dizer que pela via eleitoral jamais chegaremos a ele, porque sua aplicação já representa a própria destruição do Estado burguês-latifundiário e a construção do Estado de operários e camponeses.
A revolução agrária é a aplicação imediata do seu programa, é a destruição, passo a passo, do latifúndio. O PADDP possui três pilares, que vão sendo implementados conforme a luta se desenvolva, são eles: 1) tomar todas as terras do latifúndio e entregá-las imediatamente aos camponeses pobres; 2) libertação das forças produtivas no campo desenvolvendo novas relações de produção partindo dos grupos de ajuda mútua, para formas cooperadas e coletivas de produção, combinando a utilização de meios e instrumentos de produção mais desenvolvidos; 3) expulsar as forças do Estado e estabelecer o poder político das massas organizadas, organizando toda a sua vida política e social, construindo escolas populares, serviço de saúde popular, sistema de transporte e meios de difusão e fortalecimento da cultura de nosso povo.
Este programa já está sendo aplicado pelo movimento camponês revolucionário, que se fortalece por todo o país. Sua aplicação consiste na organização da massa para as tomadas de terra, preparando a resistência e não aceitando as enrolações dos órgãos do governo, como Incra, Funai e Ibama. Porque o que garante a posse da terra é a luta. Depois de vencerem o primeiro momento do cerco do latifúndio é feita a entrega imediata da terra aos camponeses em luta. O corte imediato da terra, independente da autorização do governo, permite, mais rapidamente, que a massa se sustente com seu próprio trabalho.
Após o corte é preciso desenvolver novas relações de produção, superando o atraso da agricultura familiar, nisto consiste o segundo pilar do Programa Agrário. A idéia do trabalho individual e familiar está muito arraigada entre os camponeses, mas esta é uma visão atrasada fruto da pouca experiência destes com o trabalho cooperado e coletivo. Para organizar a ajuda mútua são organizados grupos de famílias que começam a trabalhar de maneira cooperada. Esta forma de organização facilita também o incremento da produção com técnicas e instrumentos modernos, como aquisição de tratores, máquinas de beneficiamento, etc. Neste processo são organizados planos econômicos nas áreas, que priorizam o plantio de subsistência e a produção de outros itens que gerem divisas para compra daquilo que ainda não pode ser produzido, garantindo assim a independência econômica dos camponeses. Somente a produção cooperada pode vencer o cerco dos monopólios do latifúndio, somente com a cooperação é possível manter a terra com os camponeses. A cooperação se desenvolve das formas inferiores às superiores, desenvolvendo novas relações e impulsionando as forças produtivas, sentando bases para a coletivização e as relações socialistas no campo.
O terceiro pilar, a expulsão do latifúndio, é o passo mais avançado do programa agrário. Este pilar consiste no fustigamento, econômico e político, do latifúndio, impondo a estes grandes prejuízos de maneira que as áreas revolucionárias no campo fiquem livre desta praga. A expulsão do latifúndio é para criar os vazios de poder, ou seja, regiões onde o Estado reacionário não exerce mais a sua dominação, esta é uma condição fundamental para a construção e estabelecimento do poder popular e desenvolvimento da revolução democrática. O novo poder se inicia também passo a passo, e vai das formas mais simples para as mais complexas. Um dos primeiros instrumentos do poder popular são as Escolas Populares, escolas de novo tipo, que difundem a ideologia e consciência revolucionária e, portanto, servem ao impulsionamento da revolução agrária e à construção dos embriões do poder popular. Estas escolas cuidam inicialmente da educação das crianças, da alfabetização dos adultos, da formação técnica e, no seu desenvolvimento, passam a ajudar na elaboração dos planos econômicos. As Escolas Populares são independentes do velho Estado e a sua direção está na mão das massas e não na dos órgãos burgueses e burocráticos dos governos de plantão.
Com o desenvolvimento da luta e com a aplicação do programa agrário vão se consolidando as áreas revolucionárias, controladas pelas massas e onde vigora cada vez mais o poder popular. A ampliação destas áreas no interior do nosso país representa o cerco da cidade pelo campo, caminho da revolução no Brasil. Com o desenvolvimento da revolução agrária inevitavelmente o imperialismo ianque irá intervir para tentar impedi-la, a invasão de tropas estrangeiras transformará a contradição imperialismo versus nações oprimidas na contradição principal de nossa sociedade. A solução desta contradição será dada pela revolução de libertação nacional, que cumprirá a segunda fase da revolução democrática de novo tipo, varrendo mais esta montanha que pesa sobre o nosso povo. Junto com o imperialismo derrotaremos também os seus gerentes locais, a grande burguesia e o capitalismo burocrático.
Todos revolucionários e estudantes lutadores devem ter claro que a revolução agrária não é uma tarefa exclusiva do movimento camponês. Ela é o caminho para chegarmos ao socialismo. Dentre as três colunas que sustentam o sistema vigente (latifúndio, imperialismo e grande burguesia) os latifundiários representam a classe mais débil, porque é a mais anacrônica e atrasada, é contra ela que podemos arregimentar mais forças na sociedade. Nós estudantes não podemos nos contentar em apoiar a revolução agrária, devemos participar dela ativamente, impulsionando-a com o apoio da intelectualidade, mas principalmente nos deslocando para o campo para ajudarmos nesta difícil empreitada de construção dos embriões do poder popular.
A revolução agrária é o primeiro passo para a expulsão do imperialismo e para a construção do socialismo. Destruindo o latifúndio, acabamos com o principal grilhão que detém o desenvolvimento das forças produtivas em nosso país, e assim liberamos grandes forças para a edificação de uma nova economia. A derrota do latifúndio é uma derrota do imperialismo. Acabando com o latifúndio, acabamos, também, com o principal aliado interno, político e econômico, da grande burguesia. A revolução agrária é uma fase da revolução democrática que resolverá o problema agrário e camponês e o problema nacional. Na medida que triunfa a revolução democrática se inicia imediatamente a revolução socialista. Mas mesmo antes, a revolução democrática já cumpre uma parte importante do programa socialista, pois a destruição das três montanhas representará a nacionalização de todo o capital estrangeiro, do grande capital local, do confisco de todas as terras do latifúndio e na nacionalização das agroindústrias.
A luta pela terra no Brasil é uma trajetória heróica da massa de camponeses pobres. A sua violência demonstra como esta contradição é aguda em nossa pátria; que este é um problema que deve ser resolvido pela revolução brasileira. Sem uma direção proletária que concretize a aliança operário-camponesa, a luta pela terra não pode sair vitoriosa. Somente um novo poder, de operários e camponeses, pode garantir a terra para quem nela trabalha. É tarefa de todos os revolucionários impulsionar a luta pela terra, porque toda a revolta camponesa, oprimida pelo latifúndio secular, é uma grande força transformadora, sem a qual não haverá revolução em nosso país, sem a qual não conseguiremos expulsar o imperialismo de nossas terras, derrotar e confiscar a burguesia e construir o socialismo.


*Revisionismo: conjunto de idéias burguesas surgidas dentro do movimento operário que falsificam o Marxismo negando sua essência revolucionária.

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